quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

O Clube Dumas - Capítulo VI



VI.       Sobre apócrifos e infiltrados

Azar? Permita-me rir, por Deus. Essa é uma
Explicação que só satisfaz aos imbecis.
(M. Zevaco. Os Pardaillans)
CENIZA HNOS.
ENCADERNAÇÃO
E RESTAURAÇÃO DE LIVROS.

        A moldura de madeira pendurava-se de uma janela com vidros empoeirados e opacos. Era um rótulo riscado, cheio de rachaduras, descoloridos pelo tempo e a umidade. A oficina dos irmãos Ceniza estava no mezanino de um edifício antigo de quatro pisos, apoiado em cima, em uma rua sombria da velha Madrid.
        Lucas Corso chamou duas vezes sem obter resposta. Olhou o relógio e, encostado na parede, se dispôs a esperar. Conhecia bem os costumes de Pedro e Pablo Ceniza; nesse momento se encontravam a um par de ruas de distância, junto da vitrina de mármore do bar La Taurina, bebendo meio litro de vinho como café da manhã enquanto discutiam sobre livros e touradas. Solteiros, bêbados, amuados e inseparáveis.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

O Clube Dumas - Capítulo V

V.       Remember
~
Estava sentado de forma como o havia
deixado em sua poltrona, colocado
diante da chaminé.
(A.Christie. O assassinato de R. Ackroyd)

        É aqui onde entro em cena pela segunda vez, pois foi então quando Corso recorreu a mim novamente. E o ajudei, acredito, uns dias antes de ir-se à Portugal. Segundo me confiou mais tarde, a essas alturas suspeitava já que o manuscrito Dumas e As Nove Portas de Varo Borja eram só as pontos do iceberg, e que para sua compreensão era necessário conhecer antes as outras histórias que se rodeavam entre si do mesmo modo que aquela corda nas mãos de Enrique Taillefer. Isso não era fácil, cheguei a dizer-lhe, pois em literatura nunca há limites nítidos; tudo se apoia em algo, as coisas se sobrepõem umas as outras e terminam sendo um complicado jogo intertextual a base de espelhos e sorrisos russos, onde estabelecer um feito preciso, uma paternidade concreta, implica riscos que só certos colegas muitos estúpidos ou muito seguros de si mesmos se atrevem a correr. É como dizer a Robert Graves se nota Quo Vadis e não Suetonio, ou Apolonio de Rodas. E quanto a mim, só sei que nada sei. E quando quero saber busco nos livros, estes que nunca faltam a memória.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

O Clube Dumas - Capitulo IV

IV.     O homem da cicatriz
De onde vem, não sei. Porém aonde vai, posso dizer: vai ao inferno.
(A.        Dumas. O conde de Montecristo)

Anoitecia quando Corso chegou a sua casa, sentindo o doloroso pulsar na sua mão ferida no bolso do casaco. Foi ao banheiro, pegou do chão o pijama amassado e uma toalha, e manteve o pulso cinco minuto debaixo de um jorro de água fria. Depois abriu um par de latas em conserva para jantar de pé, na cozinha.
Havia sido um dia estranho, e perigoso. Refletia sobre ele, confuso pela sucessão de acontecimentos, ainda que com menos inquietude que curiosidade. Desde algum tempo atrás, sua atitude diante o inesperado se reduzia ao desapaixonado fatalismo de quem espera que a vida dê o passo seguinte. Essa ausência de compromisso, essa neutralidade ante os acontecimentos, excluía todo protagonismo. Até aquela manhã na calçada de Toledo, seu papel havia sido sempre de executor. As vítimas eram os outros. Cada vez que mentia ou negociava com alguém, o feito se produzia de modo objetivo, sem nexo moral com as pessoas ou coisas que eram somente matéria de seu trabalho. Lucas Corso se mantinha na margem, mercenário não comprometido, exceto em benefício formal; homem indiferente. Talvez essa atitude o permitiu sentir-se sempre a salvo, do mesmo modo que, quando tirava os óculos, as pessoas e objetos distantes se diluíam em contornos imprecisos, desfocados, cuja existência podia ignorar ao priva-los de sua envoltura formal. Agora, no entanto, a dor concreta na mão machucada, a sensação de ameaça, disposta a explodir na sua vida com violência específica da que ele, e não outros, era objeto, sugeriam inquietantes mudanças no panorama. Lucas Corso, que tantas vezes trabalhou como carrasco, não tinha o abto de considerar-se vítima de nada. E isso o desconcertava.