sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O Clube Dumas – Introdução + 1° Capítulo

A seguir você encontrará disponível a introdução e o primeiro capítulo traduzido do livro O Clube Dumas
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O Clube Dumas
Arturo Perez Reverte

O flash de luz projetou a silhueta do enforcado na parede. Pendurava imóvel de uma lâmpada no centro do salão, e à medida que o fotógrafo se movia a seu redor, conduzindo a câmera, a sombra provocada pelo flash se recortava sucessivamente sobre quadros, vitrines com porcelanas, estantes com livros, cortinas abertas sobre grandes janelas enquanto caía a chuva.
O juiz instrutor era jovem. Tinha pouco cabelo, bagunçados e molhado, como a capa de chuva que mantinha sobre os ombros enquanto ditava as diligências ao secretário que escrevia sentado no sofá, com a máquina portátil sobre uma cadeira. O teclar ponteava a voz monótona do juiz e os comentários em voz baixa dos policiais movendo-se pela casa:
-… De pijama, com um roupão por cima. O cordão dessa roupa causou a morte por enforcamento. O cadáver tem as mãos atadas na parte da frente do corpo com uma amarra. Seu pé esquerdo calça um chinelo e o outro se encontra descalço…
O juiz tocou o pé calçado do morto e o corpo girou um pouco, lentamente, ao extremo do tenso cordão de seda que unia seu pescoço com a lâmpada no teto.  O movimento foi de esquerda à direita, e depois em sentido inverso e com a volta mais curta até centrar-se de novo na postura original, como uma agulha magnetizada que recupera o norte trás uma breve oscilação. Ao se afastar, o juiz se inclinou para evitar um policial fardado que, sobre o cadáver, buscava pelas digitais. Havia um vaso quebrado no chão e um livro aberto por uma página sublinhada com lápis vermelho. O livro era um velho exemplar de “O Visconde de Bragelonne”, uma edição barata encadernada em tela. Inclinando-se sobre o ombro do agente, o juiz olhou o texto sublinhado:
“-Me venderam -murmurou-. Tudo se sabe!
- Tudo se sabe no fim –disse Porthos, que nada sabia.”
Fez com que o secretário tomasse nota daquilo, ordenou incluir o livro no sumário, e foi se reunir com um homem alto que fumava ao lado de uma janela aberta.
- O que você acha? –perguntou ao se aproximar.
O homem alto carregava o emblema da polícia pendurada num bolso de sua jaqueta de couro. Demorou em responder o tempo necessário para tragar o cigarro que tinha entre o dedos, antes de joga-lo pela janela sem olhar.
-Quando é branca e vem engarrafada, geralmente trata-se de leite -respondeu finalmente, crítico, mas não tanto como para que o juiz não apontasse um sorriso; a diferença da polícia, ele olhava a rua, de onde continuava chovendo fortemente. Alguém abriu uma porta do outro lado da sala, e o jato de ar trouxe gotas de água no seu rosto.
-Fechem essa porta –ordenou sem virar-se. Depois falou ao policial-: Há homicídios que se disfarçam de suicídios.
-E vice-versa  –acrescentou o outro tranquilo.
- O que me diz das mãos e da amarra?
- Às vezes temem se arrepender na última hora… De outro modo teria as atado nas costas.
-Isso não muda as coisas –disse o juiz-. A corda é fina e resistente. Uma vez que perdeu o equilíbrio, nem com as mãos livres teria a menor oportunidade.
-Tudo é possível. Com a autópsia saberemos mais.
O juiz voltou a checar novamente o cadáver. O agente das digitais se levantava com o livro nas mãos.
-É curiosa esta página.
O policial alto encolheu os ombros.
-Eu leio pouco -disse-. Porém esse tal de Porthos é um dos personagens, não?… Athos, Porthos, Aramis e d’Artagnan contava com o polegar sobre os dedos de uma mão e ao concluir parou pensativo-. Engraçado. Sempre me perguntei por que se chamam os três mosqueteiros, se na realidade eram quatro.
  1. O vinho de Anjou
O leitor deve se preparar para assistir
A mais sinistra das cenas.
(E. Sue. Os mistérios de Paris)
Chamo-me Boris Balkan e uma vez traduzi A Cartuxa de Parma. Ademais, as críticas e resenhas que escrevo saem em suplementos e revistas de metade da Europa, organizo cursos sobre escritores contemporâneos nas universidades de verão, e tenho alguns livros editados sobre novelas populares do século XIX. Nada espetacular, temo; sobre tudo, nesses tempos, onde os suicídios se disfarçavam de homicídios, as novelas são escritas pelo médico de Rogelio Ackroyd,  e muita gente se empenha em publicar duzentas páginas sobre as apaixonantes aventuras que experimentam olhando-se no espelho.
Porém, vamos nos manter na história.
Conhecia Lucas Corso quando veio a mim com O vinho de Anjou debaixo do braço. Corso era um mercenário da bibliofilia; um caçador de livros para os outros. Isso inclui os dedos sujos e a fala fácil, bons reflexos, paciência e muita sorte. Também uma memória prodigiosa, capaz de recordar em que canto empoeirado de uma tenda velha se encontra esse exemplar pelo qual pagam uma fortuna. Sua clientela era seleta e reduzida: vinte livreiros de Milão, Paris, Londres, Barcelona ou Lausanne, dos que só vendem por catálogo, gastam com seguro e nunca manejam mais de cinquenta títulos de uma vez; aristocratas de incunábulos para aqueles que em vez de pergaminho, velho, ou três centímetros mais na margem da página, pagam milhares de dólares. Chacais de Gutenberg, piranhas de férias de antiquário, sanguessuga de leilão, são capazes de vender suas mães por uma primeira edição; mas recebem os clientes em salões com sofás de couro, vista à Catedral ou ao lago Contanza, e nunca mancham as mãos nem a consciência. Para isso existem os tipos como Corso.
Tirou do ombro uma bolsa de lona e a pôs no chão, junto com seus sapatos Oxford sem lustrar, antes de ficar olhando o retrato de Rafael Sabatini que tenho sobre a mesa de despacho, junto à estilográfica que utilizo para corrigir artigos e provas. Isso me agradou, pois as visitas geralmente prestam pouca atenção; o tomam por um velho parente. Eu olhava sua reação e observei que sorria enquanto sentava-se: uma careta infantil, de coelho na rua; dessas que captam imediatamente a benevolência incondicional do público em qualquer filme de desenhos animados. Com o tempo soube que também era capaz de sorrir como um lobo implacável e fraco, e que podia compor um ou outro gesto segundo exigiam as circunstâncias; mas isso foi muito mais tarde. Naquele momento estava convincente, assim que resolvi arriscar um santo e disse:
-Nasceu com o dom do riso –citei, assinalando o retrato e com a sensação que o mundo estava louco…
O vi mover lentamente a cabeça, com gesto lento e afirmativo, e experimentei por ele uma simpatia cúmplice que, apesar de tudo que ocorreu depois, ainda mantenho. Havia tirado de alguma parte, mexendo na embalagem, um cigarro sem filtro tão enrugado como seu velho casaco e calças de cotelê. Dava voltas no cigarro entre os dedos, observando-me através dos óculos de aros de aço torcidos sobre o nariz; com o cabelo, que estava um pouco grisalho, despenteado na frente. A outra mão se mantinha, do mesmo modo como se sacava uma pistola oculta, em um dos bolsos: enormes covas, deformados por livros, catálogos, papéis e –também soube mais tarde- um frasco cheio de gim Bols.
-… E esse foi todo seu patrimônio – completou sem dificuldade a fala, antes de arrumar-se na poltrona, sorrindo de novo-. Embora, se vou ser sincero, gosto mais d’O Capitão Blood. Levantei a estilográfico no ar para censura-lo, severo.
-Faz mal. Scaramouche é a Sabatini o que Os três mosqueteiros são a Dumas –fiz um gesto breve de homenagem em direção ao retrato-. Nasceu com o dom do riso… Não há na história da série de aventuras duas linhas comparáveis a essas.
-Quem sabe esteja certo –concedeu com aparente reflexão, e então pôs o manuscrito sobre a mesa, em seu carpete protetor com fundo de plástico, uma por página-. E é uma coincidência que mencionaste a Dumas.
Empurrou o carpete até a mim, de modo que eu pudesse ler seu conteúdo. Todas as folhas estavam escritas em francês por um lado e havia dois tipos de papel: um branco, mas amarelado pelo tempo, e outro azul pálido com grade fina, envelhecido também pelos anos. Cada cor correspondia uma escrita diferente, embora o do papel azul –desenhada com tinta negra- figurava nas folhas brancas a modo de anotações posteriores à redação original, cuja caligrafia era menor e pontuda. Havia quinze folhas no total, e onze eram azuis.
-Curioso –levantei a vista a Corso; me observava com olhos tranquilos que iam do carpete a mim e de mim ao carpete-. Onde encontrou isso?
Coçou uma sobrancelha, calculando sem dúvida até que ponto a informação que perguntei o obrigava a fornecer esse tipo de detalhe. O resultado foi uma terceira careta, desta vez inocente. Corso era um profissional.
-Por aí. Um cliente de um cliente.
-Compreendo.
Fiz uma curta pausa, cuidadoso. Além de precaução e reserva, cautela significa astúcia. E ambos sabíamos disso.
-Claro que -adiantou- te digo nomes se você pedi-lhos.
Respondi que não era necessário e isso pareceu tranquiliza-lo. Ajustou os óculos com um dedo antes de pedir minha opinião sobre o que tinha em mãos. Sem responder em seguida, passei as páginas do manuscrito até chegar à primeira. O cabeçalho estava em letras maiúsculas, com traços mais grossos: LE VIN D’ANJOU.
Li em voz alta as primeiras linhas:
“Apres de nouvelles presque désespérées du roi, le bruit de as convalescence commençait a se répandre dans le camp…”
Não pude evitar um sorriso. Corso fez um gesto de assentimento, me convidando a dar um veredicto.
-Sem a menor dúvida –disse- isto é de Alejandro Dumas, padre. O vinho de Anjou: capítulo quarenta e tantos, acredito recordar, d’Os três mosqueteiros.
-Quarenta e dois –confirmou Corso-. Capítulo quarenta e dois.
-É o original? O autêntico manuscrito de Dumas?
-Para isso estou aqui. Para que me diga.
Encolhi um pouco os ombros, a fim de eludir uma responsabilidade que soava excessiva.
-Porque eu?
Era uma pergunta estúpida, das que só servem para ganhar tempo. A Corso deveria ter parecido falsa modéstia, porque reprimiu uma careta de impaciência.
-Você é um expert –disse, um pouco seco-. E além de ser o crítico literário mais influente deste país, sabe tudo sobre a novela popular do século XIX.
-Esqueceu-se do Stendhal.
-Não me esqueci dele. Li sua tradução de A Cartuxa de Parma.
-Você me lisonjeia.
-Não acredite. Prefiro a de Consuelo Berges.
Ambos sorrimos. Seguia caindo bem em mim, e eu começava a perfilar seu estilo.
-Conhece meus livros? –aventurei-me.
-Alguns. Lupin, Raffles, Rocambole, Holmes, por exemplo. Os estudos sobre Valle-Inclán, Baroja e Galdós. Também Dumas: a pegada de um gigante. E seu ensaio sobre O conde de Montecristo.
-Leu todos esses títulos?
-Não. Só porque trabalho com livros não significa que estou obrigado a lê-los.
Mentia. Exagerava, ao menos, o aspecto negativo da questão. Aquele indivíduo pertencia ao gênero conscientizado; antes de ver isso, um olhar sobre mim a quanto pude encontrar.  Era um desses leitores compulsivos que devoram papel impresso desde a mais terna infância; no caso –pouco provável de que em algum momento a infância de Corso merecera qualificar-se de terna.
-Compreendo –respondi, para dizer qualquer coisa.
Franziu a testa, um momento, se certificando se esquecia de algo, e depois tirou os óculos, expirou nos cristais e se pôs a limpá-los com um pano muito enrugado que extraio dos insondáveis bolsos do casaco. Atrás da falsa aparência de fragilidade que lhe dava aquela roupa demasiadamente grande, com seus incisivos de roedor e o ar tranquilo, Corso era sólido com um ladrão obstinado. Tinha atributos do rosto afiados e sólidos, cheios de ângulos, emoldurando olhos atentos, sempre dispostos a expressar uma ingenuidade perigosa para quem se deixava seduzir por ela. Às vezes, sobretudo quando estava quieto, dava a impressão de ser mais desajeitado e lento do que era na realidade. Pertencia a essa classe de tipos desamparados a quem os homens oferecem tabaco, os camareiros oferecem um copo extra e as mulheres sentem desejos de tê-lo. Depois, quando caía a ficha do que estava ocorrendo, era muito tarde para jogar a luva. Galopava na distância atacando moscas com sua navalha.
-Voltemos a Dumas –sugeriu enquanto apontava com óculos  o manuscrito-. Alguém capaz de escrever quinhentas páginas sobre ele deveria reconhecer um ar familiar ante seus originais… Não acha?
Pus uma mão sobre as páginas protegidas em plástico com a unção que um sacerdote empregaria respeito aos ornamentos do ofício.
-Temo te decepcionar, mas não sinto nada.
Começamo-nos a rir os dois. Corso tinha uma risada peculiar, quase entre dentes: a de quem não está seguro de que seu interlocutor e ele riam da mesma coisa. Uma risada atravessada e distante, com algo de insolência pelo meio; dessas que pairam no ar por muito tempo, até quando se desvanecem. Até mesmo quando seu proprietário faz que já partiu.
-Vamos por partes –falei. É seu o manuscrito?
-Já disse que não. Um cliente acaba de adquiri-lo, e o surpreende que até agora ninguém ouviu falar deste capítulo original e íntegro d’Os três mosqueteiros… Deseja uma autenticação em escrito, e trabalho com isso.
-Me estranha que se ocupe com assuntos menores –era certo; também eu havia ouvido falar de Corso, antes-. Afinal de contas Dumas, hoje em dia…
Deixei no ar, sorrindo de modo apropriado, com amargura cúmplice; mas Corso não aceitou a oferta e se manteve na defensiva:
-Meu cliente é amigo –pontualizou, neutro-. Trata-se de um serviço pessoal.
-Compreendo, mas não sei se vou ser útil a você. Vi alguns originais e este poderia ser autêntico; embora certificado é outra coisa. Para isso necessita de um bom grafólogo… Conheço um excelente em Paris: Achille Replinger. Tem uma livraria especializada em autógrafos e documentos históricos perto de Saint Germain de Pres… Expert em autores franceses do século XIX, homem encantador e bom amigo meu –assinalei a um dos quadros pendurados na parede-. Essa carta de Balzac ele me vendeu faz anos. Caríssima, por certo.
Peguei a agenda a fim de copiar a direção e criei um trajeto para Corso. Guardou-a em um gastado caderno de anotação cheio de notas e papéis, antes de extrair do casaco um bloco e um lápis dos que tem uma borracha na ponta. A borracha estava mordida, igual à de um aluno de escola.
Posso te fazer umas perguntas?
-Claro que sim.
-Conhecia a existência de algum capítulo autografado completo de Os três mosqueteiros?
Neguei com a cabeça antes de responder, enquanto voltava a colocar o boné na Montblanc.
-Não. Essa obra apareceu por entregas em Le Siécle, entre março e julho de 1844… Uma vez composto o texto por um tipógrafo, o manuscrito original foi para o lixo. No entanto, ficaram alguns fragmentos; pode consulta-los em um apêndice da edição Garnier de 1968.
-Quatro meses é pouco –Corso mordia a ponta do lápis pensativo-. Dumas escreveu rápido.
-Nessa época todos escreviam rápido, Stendhal compôs sua Cartuxa em sete semanas. De qualquer forma, Dumas utilizava colaboradores: negros, em jargão. O de Os mosqueteiros, vinte anos depois, e em O visconde de Bragelonne, que fecha o ciclo. Também em O conde de Montecristo e em algumas novelas mais… Essas sim, você leu, suponho.
-Claro. Como todo o mundo.
-Como todo o mundo em outros tempos, quer dizer –deslizando com respeito as páginas do manuscrito está longe da época em que uma assinatura de Dumas multiplicava tiradas e enriquecia editores. Quase todas as suas novelas apareceram assim, por entregas, com ele continuará no próximo número a pé de página e o público ficava com a alma em expectativa até o capítulo seguinte… Embora você já saiba de tudo isso.
-Não se preocupe. Continue.
-Que mais quer que eu diga? No folhetim canônico, a clave do êxito é simples: o herói, a heroína, tem virtudes ou defeitos que obrigam o leitor a identificar-se com ele. Se isso ocorre hoje com as telenovelas, imagina-se o efeito, naquela época sem rádio e nem televisão, sobre uma burguesia cheia de surpresas e entretenimento, pouco exigente enquanto a qualidade forma ou bom gosto… Assim o compreendeu o gênio de Dumas, e com sábia alquimia fabricou um produto de laboratório: umas gotas disso, um pouco daquilo, e seu talento. Resultado: uma droga que criava viciados –assinalei o peito, não sem orgulho-. Que ainda acredita.
Corso tomava notas. Meticuloso, desaprendido e letal como uma mamba negra, o definiria depois um de seus conhecidos, quando saiu o nome para agrupamento. Tinha um modo singular de situar-se frente aos outros, de olhar através dos óculos torcidos e assentir lentamente com certa dúvida razoável e bem intencionada; igual uma prostituta ao encarar, tolerante, um soneto sobre Cupido. Como lhe dando oportunidade de retificar antes que tudo aquilo fosse definitivo.
Ao cabo de um momento parou e levantou a cabeça.
-Mas você não limita seu trabalho a novela popular. É um crítico conhecido por outras atividades… –pareceu duvidar, buscando o término-. Mais sérias. E o próprio Dumas definia suas obras como literatura fácil… Isso soa a desdém ao público.
Aquele fingimento situava bem a meu interlocutor; era uma de suas assinaturas, como os quebra-molas no lugar de carros. Colocava as coisas longe, em aparência sem tomar partido, mas incomodado com pequenos golpes de guerra. Alguém que se irrita fala, esgrime argumentos e justificações, o que equivale a mais informação para o adversário. Ainda assim, ou talvez por isso, porque não nasci ontem e compreendia a tática de Corso, me senti irritado:
-Não caia em clichês –respondi, impaciente-. O folhetim produziu muito papel desprezível, mas Dumas estava por cima disso. Na literatura, o tempo é um naufrágio em que Deus reconhece aos seus; o desafio a que citei heróis de ficção que sobrevivam com a saúde de d’Artagna e  seus companheiros, salvo, talvez, o Sherlock Holmes de Conan Doyle… O ciclo de Os mosqueteiros constitui uma novela de capa e espada sem dúvida “folhetinesca”; encontrará aí todos os pecados próprios da sua classe. Porém, é também, um folhetim ilustre, mais além dos outros níveis habituais do gênero. Uma história de amizade e aventuras que permanece fresca apesar da mudança de gostos e do estúpido descrédito em que há caído a ação. Parece que, desde Joyce, devamos resignar-nos a Molly Bloom e renunciar a Nausicaa pelo naufrágio, em uma praia… Nunca leu meu opúsculo Sexta-feira ou a agulha de marear?… Se tratando de Ulises, fico com o de Homero.
Levantei um ponto o tom ao chegar aí, aceitando a reação de Corso. Sorria a medida sem soltar-se, mas eu recordava a expressão de seus olhos quando citei Scaramouche e me sentia em bom caminho.
-Sei a que se refere –disse por fim-. Suas opiniões são conhecidas e polêmicas, senhor Balkan.
-Minhas opiniões são conhecidas porque eu fiz com que sejam assim. E enquanto o público as depreciar, como assegurava você até um momento, talvez não saiba que o autor de Os três mosqueteiros se bateu na rua durante as revoluções de 1830 e 1848 e proporcionou armas, pagando-as de seu bolso, a Garibaldi… Não esqueça que o padre de Dumas era um conhecido general republicano… Aquele homem declarava amor ao povo e a liberdade.
-Embora seu respeito pelo rigor dos atos fosse relativo.
-Isso é o de menos. Sabe que respondia a quem o acusavam de violar a história?…”A violou, de verdade. Porém eu faço belas criaturas”.
Pus a estilográfica sobre a mesa e me levantei, achegando-me as estantes de livros que cobrem as paredes de meu escritório. Abri uma para escolher um volume encadernado em capa escura.
-Como todos os grandes fabuladores –Acrescentei-, Dumas era um mentiroso… A condessa Dash, que o conheceu bem, desse em suas memórias que lhe bastava contar uma anedota apócrifa para que essa mentira se desse por histórica. Verifique com o cardenal Richelieu: foi o homem mais grande de seu tempo; mas depois de passar pelas trabalhosas mãos de Dumas, sua imagem chega até nós deformada e, sinistra, com a degustação de um vilão… –me voltei a Corso, o livro nas mãos-. Conhece este? Gatien de Courtilz de Sandras o escreveu, um mosqueteiro que viveu no final do século XVII. São as memórias de Artagnan, o autêntico: Carlos de Batz-Castelmore, conde de Artagnan. Um gascão nascido em 1615 que, em efeito, foi mosqueteiro; ainda que não viveu na época de Richelieu, senão na de Mazarino. Morreu em 1673 durante o local de Maestrich quando, igual que seu homônimo de ficção, ia a receber o bastão de marechal… Como vês, as violações de Alejandro Dumas criaram lindas criaturas… No escuro gascão de carne e osso, cujo nome a história havia esquecido, o gênio do novelista o converteu em uma lenda gigante.
Corso permanecia em seu assento, escutando. Pus em suas mãos o livro e o olhou com interesse e cuidado. Passava lentamente as páginas, tocando-as apenas com as pontas dos dedos, sem tocar mais que a borda em cada folha. De vez em quando se detinha em um nome ou um capítulo. Atrás dos cristais de seus óculos, os olhos atuavam seguros e rápidos. Em certo momento, parou para anotar as datas no bloco:
“Memoires de M d’Artagnan, G. de Courtilz, 1704, P. Rouge, 4 volumes in-12, 4ª. Edição”. Depois fechou o livro para me olhar.
-Você disse: era um trapaceiro.
-Sim –disse enquanto me assentava novamente- Mas genial. Onde outros se limitaram a plagiar, ele construiu um mundo novelesco que continua até hoje… “O homem não rouba, conquista”, repetia frequentemente… “Faça de cada província que tome um anexo de seu império: impõe-nos suas leis, a resolução de temas e personagens, estenda seu espectro sobre ela…” Que outra coisa é a criação literária? Em seu caso, a história da França forneceu o recife.  O truque era extraordinário: respeitar o quadro e alterar o quadro, roubar sem escrúpulos o tesouro que se oferecia… Dumas converte aos personagens principais em secundários, os que foram humildes se tornam protagonistas e cria páginas inteiras com incidentes que na crônica real ocupam duas linhas… Jamais existiu o pacto de amizade entre d’Artagnan e seus companheiros, entre outras coisas porque alguns nem se conheciam… Tampouco existiu um conde da Fère, ou melhor, houve muitos, e nenhum se chamava Athos. Porém Athos existiu; se chamava Armando de Sillegue, senhor de Athos, morreu de uma ataque em um duelo antes de que d’Artagnan entrou nos mosqueteiros do rei… Aramis foi Henri de Aramitz, escudeiro, abatedor leigo na senescalia de Oloron, em 1640 nos mosqueteiros que mandava seu tio. Terminou retirado em suas terras, com mulher e quatro filhos. E quanto a Porthos…
-Não me diga que também existiu um Porthos.
-Existiu. Chama-se Isaac de Portau e teve que conhecer a Aramis, o Aramitz, porque entrou nos mosqueteiros três anos depois que ele, em 1643. Segundo a crônica morreu prematuramente: enfermidade, na guerra, ou num duelo como Athos.
Corso percorreu os dedos sobre as Memórias de d’Artagnan e moveu um pouco a cabeça. Sorria.
-De um momento a outro vai me dizer que também existiu uma Milady.
-Exato. Mas não se chamava Ana de Brieul, nem foi duquesa de Winter. Tampouco levava uma flor de lis marcada no ombro, ainda que fosse agente de Richelieu. Chamava-se condessa de Carlille, e o roubou duas ponteiras de diamante em um baile ao duque de Buckhingam… Não me olhe com essa cara. La Rochefoucauld conta isso em suas memórias. E La Rochefoucauld era um homem muito sério.
Corso me observava por frieza. Não parecia daqueles que se admiram com facilidade e muito menos em se tratando de livros; mas se mostrava impressionado. Depois, quando o conheci melhor, cheguei a perguntar-me se a admiração era sincera, ou uma de suas retorcidas habilidades profissionais. Agora que tudo terminou, acredito estar seguro: eu era uma fonte a mais de informação e Corso dava fio à pipa.
-Tudo isso é muito interessante -disse. –Se vai a Paris, Replinger poderá lhe contar muito mais que eu –olhei ao original sobre a mesa.
-Ainda que ignoro se compensa o gasto de uma viagem… Quanto pode valer esse capítulo no mercado?
Mordeu de novo a ponta do lápis, compondo gesto asséptico:
-Não muito. Na verdade vou por outro assunto.
Sorri com tristeza cúmplice. Entre minhas escassas posses se contam um Quixote de Ibarra e um Volkswagen. Claro que, o automóvel me custou mais que o livro.
-Se ao que se refere –disse, em tom solidário.
Corso fez um gesto que podia ser interpretado como resignação. Seus caninos projetavam uma careta ácida:
-Até que os japoneses se fartem de Van Gogh e Picasso –sugeriu- e o invertam todos em livros raros.
Inclinei-me para trás no assento, escandalizado.
-Que Deus nos ampare quando isso ocorra.
-Isso diga por você –me olhava com sarcasmo através de suas lentes torcidas-. Eu quero ficar rico logo, senhor Balkan.
Guardou o bloco no bolso do casaco enquanto se levantava, colocando no ombro a bolsa de lona. Não pude deixar de notar seu aspecto equivocadamente suave, com aqueles óculos metálicos nunca estáveis sobre o nariz. Mais tarde soube que vivia só, entre livros próprios e alheios, e além de caçador de livros raros era experiente em jogos de simulação napoleônicos, capaz de reproduzir sobre um tabuleiro, de memória, a ordem de batalha exata na véspera de Waterloo: uma história familiar, algo estranho, que até muito depois não cheguei a conhecer tudo. Hei de admitir que, lembrei-me disso, Corso parece desprovido do menor atrativo. E, portanto, aderindo ao rigor com que conto esta história, devo declarar que em sua aparência estranha, justo naquela falta de jeito que podia ser –ignoro como ele conseguia- caustica e desamparada, ingênua e agressiva ao mesmo tempo, aceitava isso que as mulheres chamam “acompanhante” e os homens simpatia. Sentimento positivo que se esfuma quando apalpamos o bolso para comprovar que acabam que nos roubar-nos a carteira.
Corso pegou o manuscrito e o acompanhei até a porta. Parei para estender a mão no salão de entrada, onde os retratos de Stendhal, Conrad e Valle-Inclán na cruel litografia que a comunidade de vizinhos, com meu voto contra, decidiu pendurar faz uns meses no final da escada.
Só então me animei a formular a pergunta:
-Confesso-te que sinto curiosidade por saber onde encontraram isso.
Parou, indeciso, antes de responder. Sem duvida analisava os prós e contras. Porém eu havia recebido-o amavelmente e estava em dívida comigo. Também poderia voltar a precisar de mim, e isso não o deixava opções.
-Talvez você o conhecia –respondeu por fim-. O manuscrito foi comprado pelo meu cliente de um tal Taillefer.
Permiti-me uma careta de surpresa, sem exageros.
-Enrique Taillefer? O editor?
Seu olhar vagava pelo salão. Depois moveu a cabeça uma vez, de acima abaixo.
-Ele mesmo.
Ficamos em silencio os dois. Corso encolheu os ombros, e eu sabia muito bem porque. A causa podia ser encontrada nas páginas de sucesso de qualquer jornal. Enrique Taillefer estava morto uma semana. Haviam-no encontrado enforcado no salão de sua casa: o cordão do robe de seda em torno do pescoço e os pés girando no vazio, sobre um livro aberto e um vaso de porcelana feito em pedaços.
Algum tempo depois, quando tudo terminou, Corsou aceitou a contar-me o resto da história. Posso assim reconstruir agora com fidelidade razoável certos acontecimento que presenciei: o encadeamento de circunstâncias que conduziram ao fatal resultado e la solução do enigma em torno ao Clube Dumas. Graças às confidências do caçador de livros posso chamar dr. Watson nesta história e contar-lhe que o seguinte ato  se iniciou uma hora depois de nossa entrevista, no bar de Makarova. Flavio La Ponte, sacudindo a agua de cima, foi acordar no bar, junto de Corso, e pediu uma cerveja enquanto recuperava a respiração. Depois olhou a rua rancoroso e satisfeito, como se acabasse de cruza-la em meio a fogo de atiradores. Chovia como uma praga bíblica.
-A razão comercial Armengol e Filhos, Livros Antigos e Curiosidades Bibliográficas pensa em processá-lo –disse, a barba loira e grisalha com espuma de cerveja em torno da boca-. Telefone para seu advogado.
-De que me acusam? –perguntou Corso. –De enganar uma mulher velha e roubar sua biblioteca. Juram que esse acontecimento comprometê-los-ia.
-Pois que acordassem cedo, como fiz eu.
-Eu disse isso, mas estão furiosos. Quando viram o lote, haviam trazido Persiles e o Foro Real de Castilha. Além do mais, fizeram uma taxação do resto muito acima de seu valor. Agora a proprietária se nega a vender. Pede o dobro do que oferecem… –bebeu um gole da cerveja enquanto virava um olho, risonho e cúmplice-. Construir uma biblioteca, se chama essa bonita manobra.
-Sei como se chama –Corso descobria os dentes em um sorriso maléfico-. E Armengol e Filhos sabem também.
-Uma crueldade desnecessário –disse La Ponte, objetivo-. Porém, o que mais os dói é o Foro Real. Dizem que rouba-lo foi um golpe baixo.
-Ali eu deixaria: dados latinos de Díaz de Montalvo, sem indicações tipográficas porém impresso em Sevilla, Alonso del Puerto, possivelmente 1482… –ajustou os óculos com o dedo para olhar seu amigo-. O que acha?
-A mim, perfeito. Porém estão muito nervosos.
-Que tomem um chá.
Era hora do aperitivo. Havia poucos lugares livres no bar e se apertavam ombro a ombro, entre fumaça de cigarros e rumor de conversações, procurando que seus cotovelos evitassem os copos sobre a mesa.
-E pelo visto –adiantou La Ponte- o Persiles é a primeira edição. Encadernação feita por Trautz-Bauzonnet.
-Corso negou com a cabeça.
-Por Hardy. Em tafilete.
-Está certo. De todas as formas garanti que eu não tinha nada haver. Já sabe que sou alérgico a processos judiciais.
-Mas não à trinta por cento.
O outro levantou uma mão, digno.
-Pare aí. Não misture as maçãs com as laranjas, Corso. Uma coisa é a linda amizade que temos.          Outra muito diferente, o pão de meus filhos.
-Não tem filhos.
La Ponte fez uma careta provocando-o.
-Dá-me tempo. Ainda sou jovem.
Era baixo, bonito, paquerador e elegante, com pouco cabelo na cabeça; o organizou um pouco com a palma da mão, estudando seu efeito no espelho do bar. Depois espiou em torno com olhos profissionais, a procura de eventual presença feminina. Sempre estava atento a esse tipo de coisa, como a elaborar frases curtas na conversa. Seu pai, um livreiro muito instruído, o havia ensinado a escrever textos de Azorín. Poucos recordavam, porém La Ponte seguia escrevendo como ele. Com muito ponto e seguido. Aquilo o dava certo aprumo dialético na hora de seduzir as clientes na sua livraria da rua principal, onde guardava os clássicos eróticos.
-Além disso –adiantou, retornando o fio com Armengol e Filos tenho assuntos pendentes. Delicados. Rentáveis a curto prazo.
-Também comigo –pontualizou Corso por cima de sua cerveja-. É o único livreiro pobre com quem eu trabalho. E esses exemplares você que vai vender.
-Bem –La Ponte se dispensava, tranquilo-. Já sabe que sou prático. Pragmático. Rasteiro.
-Eu sei.
-Imagine um filme do Oeste. Por ser meu amigo, no máximo, aceitaria um tiro no ombro.
-No máximo –admitiu Corso.
-De qualquer forma, não importa –La Ponte olhava ao redor, distraído-. Já tenho um comprador para o Persiles.
-Me pague outra cerveja. Por conta da tua comissão.
Eram velhos amigos. Amavam a cerveja com muita espuma e o gin Bols em sua caneca de barro escuro. Porém sobre tudo, os livros antigos e os velhos sebos de Madrid de qualidade. Se conheceram muitos anos atrás, quando Corso ficava em livrarias especializadas em autores espanholas por ordem de um cliente, interessado em uma Celestina fantasma que alguém citava como anterior à edição conhecida de 1499. La Ponte não tinha esse livro. Nem sequer houvera falar deste. Porém, sim, contava com uma edição do Dicionário de raridades e improbabilidades bibliográficas de Julio Ollero, onde se mencionava o tema. A conversa sobre livros derivou certa afinidade, rubricada quando La Ponte começou a fechar sua livraria e ambos esvaziaram todo o esvaziável no bar de Makarova enquanto trocavam cartões de Melville, a bordo de Pequod, e nas fugas de Azorín, La Ponte se criou de pequeno. “Chama-me Ismael”, disse ao exceder a linha de sombra da terceira Bols na garganta seca. E Corso o chamou de Ismael citando, de memória e em sua honra, o episódio do arpão de Achab:
Três cortes se deram na carne pagã, e o fio para a baleia
branca adquiriu seu templo…
Aquilo foi embebido em devida forma, até o ponto que La Ponte deixou de olhar as garotas que entravam e saíam do bar jurando a Corso amizade eterna. No fundo era ingênuo – apesar de seu cinismo militante e a profissão de livreiro velho que exercia- e ignorava que seu novo amigo dos óculos torcidos executava uma sutil manobra de ataque: ao procurar nas suas prateleiras havia localizado um par de títulos sobre os que pensava negociar. Porém certo foi que La Ponte, com sua barba loira e grisalha, os olhos doces de galã Billy Budd e seus sonhos de caçador frustrado de baleias, chegou a despertar a simpatia de Corso. Era capaz, incluso, de recitar a lista completa de tripulantes do Pequod –Achab, Stubb, Starbuck, Flask, Perth, Parsi, Queequeg, Tasthego, Daggoo, os nomes de todos os barcos citados em Moby Dick –Goney, Town-Ho, Jeroboam, Jungfrau, Bouton de Rose, Soltero, Deleite, Raquel… e, além do mais, sabia perfeitamente, prova suprema, o que era o âmbar cinza. Falaram de livros e baleias. E assim ficou fundada aquela noite a Irmandade de arpões de Nantucket, com Flavio La Ponte secretário geral, Lucas Corso tesoureiro, e ambos únicos membros do apadrinhado tolerante de Makarova, que se negou a cobrar a última rodada para terminar compartilhando com eles uma garrafa extra de gim.
-Vou a Paris –disse Corso, olhando pelo espelho a uma mulher gorda que introduzia moedas a cada quinze segundos pela ranhura da máquina de caça-níqueis, qual a melodia e o movimentos das reivindicações de cores, frutas e sinos, eram para estar ali, hipnotizada e imóvel exceto a mão que apertava os botões de jogo, até a consumação dos séculos-. Para tratar do Vinho de Anjou.
Viu seu amigo franzir o nariz e observar de relance. Paris equivalia a gastos extras, complicações. La Ponte era um livreiro modesto e mesquinho.
-Sabe que não posso permitir isso.
Corso pegava lentamente seu copo.
-Sim pode –apanhou umas moedas para pagar a volta-. Vou por outro assunto.
-Outro assunto –repetiu La Ponte, olhando-o com interesse.
Makarova pousou duas cervejas mais no balcão. Era grande, loira e quarentona, com o cabelo curto e um piercing na orelha, lembro de quando navegava a bordo de um pesqueiro russo. Usava calças estreitas e camisa arremangada até os ombros, e seus bíceps excessivamente fortes não eram o único traço masculino que podia cheirar nela. Sempre tinha um cigarro acendido no extremo da boca, consumindo ali. Com seu ar báltico e sua forma de se mover, parecia um funcionário mecânico de uma fábrica de rolamentos de Leningrado.
-Li o livro –disse a Corso desmanchando os “erres”. Ao falar, a cinza do cigarro caía sobre sua camisa úmida-. Essa fulana, Bovary. Pobre idiota.
-Cérebro que captou o fundo do assunto. Makarova enxugou o balcão com um pão.
Desde o outro extremo do bar, Zizi a vigiava enquanto fazia soar a caixa registradora. Era o oposto de Makarova: muito mais jovem, pequena e ciumenta. Às vezes, a ponto de fechar, brigavam a golpes, borrachas, ante os últimos paroquianos de confiança. Em certa ocasião, trás uma dessas brigas e com um olho roxo, Zizi havia posto terra no meio, vingativa e furiosa. Até que voltou, três dias mais tarde, as lágrimas de Makarova estiveram fazendo glup-glup ao cair dentro dos copos de cerveja. Aquela noite fecharam rápido e as viram indo abraçadas, se beijando nos portões feitos duas jovens apaixonadas.
-Se vai a Paris –La Ponte assinalou a Corso com um movimento de cabeça-. Tirar “ases” da manga.
Makarova colheu os copos vazios enquanto olhava a Corso através da fumaça do cigarro.
-Sempre tem algo escondido –disse, gutural e desapaixonadamente-. Em alguma parte.
Logo pôs os copos na pia e foi atender outros clientes, balançando os ombros quadrados. Corso era o único homem que escapava de seu desdém pelo sexo oposto, quando se negava a cobrar um copo. Mesmo Zizi o olhava com certa neutralidade. Em uma ocasião em que Makarova foi detida por quebrar a cara de um guarda em uma manifestação de gays e lésbicas, Zizi havia esperado toda a noite sentada em um banco na central de polícia. Corso a acompanhou com lanches e uma garrafa de gin, após recorrer a seus contatos na polícia para suavizar a situação. Tudo aquilo deixava La Ponte absurdamente ciumento.
-Porque Paris? –perguntou, ainda que tinha a atenção em outro lugar. Seu cotovelo esquerdo acabava de bater em algo deliciosamente suave. Parecia encantado ao descobrir que sua vizinha de bar era uma jovem loira, com peitos enormes.
Corso bebeu outro gole de cerveja.
-Também vou a Sinta, em Portugal –seguia olhando a gorda dos caça-níqueis, dava um bilhete a Zizi para que o trocasse por moedas-. É coisa de Varo Borja.
Ouviu seu amigo assoviar entre os dentes: Varo Borja, o mais importante livreiro do país. Seu catálogo era curto e seleto, e além do mais mantinha uma sólida reputação como bibliófilo que não se preocupava com gastos. Impressionado, La Ponte pediu mais cerveja e mais dados, com aquele ar seu de ignorante que corria de modo automático ao ouvir a palavra livro. Seu caráter, ainda que mesquinho e covarde confessado, não incluía a inveja salvo no tocante a propriedade de mulheres bonitas e meio embriagadas. No profissional, aparte a satisfação de fazer-se com boas peças cobradas com pouco risco, sentia um sincero respeito pelo trabalho e a clientela de seu amigo.
-Já ouviu falar de As Novas Portas?
O livreiro, que xeretava sem pressa nos bolsos para Corso que pagou também aquela rodada e estava a ponto de voltar a estudar com mais proximidade sua vizinha, pareceu esquecer tudo na hora. Tinha a boca  aberta.
-Não me diga que Varo Borja quer esse livro…
Corso pousou suas últimas moedas sobre o balcão. Makarova trazia outras duas cervejas.
-Faz tempo. E pagou uma fortuna por ele.
-Tenho certeza que sim. Só existem três ou quatro exemplares conhecidos.
-Três –Corso precisou. Um estava em Sintra, na coleção Fargas. Outro na fundação Ungern, de Paris. E o terceiros, procedente do leilão da biblioteca Terral-Coy, de Madrid, era o adquirido por Varo Borja. Interessadíssimo, La Ponte se acariciava a barba. É claro que já ouviu falar de Fargas, o bibliófilo português. E quanto a baronesa Ungern, aquela velha louca tinha ficado milionária escrevendo livros sobre ocultismo e demonologia. Seu último sucesso, Isis nua, pulverizava o topo de vendas nas grandes lojas.
-O que eu não entendo –concluiu La Ponte- é o que você que tem haver nisso.
-Conhece a história do livro?
-Muito por cima –admitiu o outro. Corso molhou um dedo em espuma de cerveja e se pôs a fazer rabiscos sobre o mármore do balcão:
-Época, meios de XVII. Cenário, Veneza. Protagonista, um impressor chamado Aristide Torchia, a quem editou o chamado Livro das Nove Portas do Reino das Sombras, uma espécie de manual para invocar o diabo. Os tempos não estão para essa literatura: o Santo Oficial consegue, sem muito esforço, que entreguem-no a Torchia. Acusações: artes diabólicas e os anexos correspondentes, agravados pelo acontecimento, dizem, de haver reproduzido nove gravuras do famoso Delomelanicon, o clássico dos livros negros, que a tradição atribui à mão do mesmíssimo Lúcifer…
Makarova havia se aproximado pelo outro lado do bar e escutava, interessada, secando as mãos na camisa. La Ponte, ao levantar o copo, parou o gesto enquanto fazia uma careta instintiva de avidez profissional.
-Qual foi a edição?
-Você pode figurar: fizeram com ela uma bonita fogueira –Corso compôs uma careta de mal-estar e cruel; parecia lamentar não tem visto a matéria-. Também contam  que ao arder se ouviu gritar ao diabo.
De cotovelos sobre os rabiscos úmidos, junto as alavancas de cerveja a pressão, Makarova emitiu um grunhido acético. Seu cabelo loiro, nórdico e viril, era incompatível com superstições e névoas do sul. La Ponte, mais sugestivo, franziu o nariz em sua cerveja, acometido por repentina sede:
-A quem teve que ouvi-la gritar foi o impressor. Suponho.
-Imagine.
La Ponte se estremeceu imaginando.
-Torturado –prosseguia Corso- com essa honra profissional que a Inquisição pregava frente às artes do Maligno, o impressor terminou por confessar, entre uivos e uivos, que continuava um livro, somente um, a salvo. Em certo lugar escondido. Depois fechou a boca e não voltou a abri-la até que o queimaram vivo. Mesmo então foi só pra dizer ai.
Makarova dedicou um sorriso a memória do impressor Torchia, ou talvez aos executores incapazes de arrancar-lhe o ultimo segredo. La Ponte franzia a testa.
-Disse que só se salvou um livro –objetou-. Porém antes falou de três exemplares conhecidos.
Corso havia tirado os óculos e os olhava na luz para comprovar a limpeza dos cristais.
-Aí está o problema –disse-. Os livros têm aparecido e desaparecido entre guerras, roubos e incêndios. Se ignora qual é o autentico.
-Talvez sejam todos falsos –sugeriu o senso comum de Makarova.
-Talvez. E eu tenho que desvendar a incógnita, averiguando se Varo Borja tem o original e o deram gato por lebre. Por isso vou a Sintra e a Paris –ajustou os óculos para olhar a La Ponte-. Eu vou cuidar de passar pelo teu manuscrito.
O livreiro assentia, pensativo, vigiando por rabo de olho a mulher dos peitos grandes refletida no espelho do bar.
-Comparado com isso, parece ridículo te fazer perder tempo com Os três mosqueteiros…
-Ridículo? –Makarova abandonava seu papel neutro para mostrar-se agora realmente ofendida-. É a melhor novela que já li!
Acrescentou aquilo com uma palmada sobre o balcão do bar, moldando com rudeza os músculos em seus antebraços nus. Boris Balkan teria gostado de ouvir isso, pensou Corso. Na particular lista de best-sellers de Makarova, da que ele mesmo cuidava como assessor literário, a novela de Dumas compartilha honores estelares com Guerra e Paz, A colina de Watership, ou Carol, da Highsmith. Por exemplo.
-Tranquilo –disse a La Ponte-. Penso cobras os gastos a Varo Borja. Ainda que eu diria que teu Vinho de Anjou é autentico… Quem falsificaria uma coisa assim?
-Há gente pra tudo –apontou Makarova, com sabedoria infinita.
La Ponte compartilhava a opinião de Corso; naquele caso, uma manipulação resultava absurda. O difundo Taillefer o havia garantido a autenticidade: punho e letra de dom Alejandro. E Taillefer era de confiança.
-Costumava leva-lo novelas antigas; os comprava todas –bebeu um gole, deixando escapar um riso pela borda do copo-. Bom pretexto para ver as pernas da sua mulher. Uma loira tremenda. Espetacular. O caso é que um dia o vejo abrir uma gaveta. Coloca O vinho de Anjou sobre a mesa. “É seu”, me disse a queima-roupa, “você se encarregue de uma análise formal e venda imediatamente…”.
Um cliente chamou a atenção de Makarova em demanda de um bitter sem álcool e esta o mandou passear.  Seguia imóvel no bar, o cigarro consumindo-se em sua boca e os olhos tampados pelo fumo; pendente da história.
-Isso é tudo? –Perguntou Corso. La Ponte fez um gesto vago.
-Praticamente tudo. Tentei dissuadi-lo, pois conhecida sua afinidade. Era daqueles capazes de dar a alma em troca de uma rareza. Porém estava resolvido. “Se não você, será outro”, disse. Aí, é claro, atingiu uma fibra. Me refiro a fibra comercial.
-Esclarecimento ocioso –disse Corso-. É a única fibra que você conhece.
Em demanda de calor humano, La Ponte voltou para os olhos cor de chumbo de Makarova; mas desistiu a primeira vista. Alí havia o mesmo calor que um fiorde noruego às três da madrugada.
-Que bonito é sentir-se querido –disse por fim, despeitado e mordaz.
Sem dúvida o indivíduo do bitter tinha sede, observou Corso, porque voltava a insistir. Makarova, olhando-o de soslaio e sem mudar de postura, sugeriu que buscasse outro bar antes que lhe partisse uma sobrancelha. Depois de pensar um pouco, o outro pareceu compreender a essência da mensagem e se retirou do meio.
-Enrique Taillefer era um tipo raro –La Ponte arrumava, uma vez mais, o cabelo sobre a careca incipiente de sua cabeça, sem perder nunca de vista a loira opulenta no espelho-. Queria que eu vendesse o manuscrito dando publicidade ao assunto –baixou o tom para salvar inquietudes à loira-. “Alguém levará uma surpresa”, disse, muito misterioso. Piscando um olho igual a quem se dispõe a correr uma maratona. E quatro dias depois estava morto.
-Morto –repetiu gutural Makarova, saboreando o término e cada vez mais interessada.
-Suicídio –declarou Corso; porém ela encolheu os ombros como se entre o suicídio e o assassinato não tinham grandes diferenças. Havia um manuscrito duvidoso e um morto seguro: suficiente para justificar a trama.
Ao ouvir do suicídio, La Ponte fez um lúgubre gesto afirmativo:
-Isso dizem.
-Não me parece muito seguro.
-É porque não estou. Tudo é muito raro –franziu outra vez a testa, ensombrecido, esquecendo o espelho-. Me cheira mal.
-Taillefer nunca te contou como obteve o manuscrito?
-De princípio não o perguntei. Depois era tarde.
-Falou com a viúva?
A alusão despejou a feição do livreiro. Agora sorria de orelha a orelha.
-Te reservo esse episódio –seu tom era de quem recorda um truque estupendo esquecida no chapéu-.          Assim cobra em espécies. Eu não posso oferecer nem a décima parte do que cobrará de Varo Borja por seu livro dos Nove Camelos.
-O mesmo farei contigo, quando descobrir um Audubon e te tornes um livreiro milionário. Me limito a adiar as acusações.
La Ponte voltou a se mostrar machucado. Para um cínico de sua envergadura, observou Corso, parecia muito sensível na hora do aperitivo.
-Acreditei que me ajudava por amizade –protestou o livreiro-. Já sabe. O Clube de Arponeiros de Nantucket. Por ali respira tudo isso.
-Amizade –Corso olhou ao redor, esperando que alguém lhe explicasse a palavra-. Os bares e os cemitérios estão cheios de amigos imprescindíveis.
-De que lado está, maldição?
-Do seu –suspirou Makarova-. Corso sempre está do seu lado.
Desolado, La Ponte comprovou que a mulher dos peitos grandes estava saindo de braço com um tipo elegante, com andar de modelo. Corso seguia olhando a gorda do caça-níqueis. Desaparecida sua última moeda, permanecia junto à maquina, desconcertada e vazia, com as mãos caídas ao longo do corpo. Se despediu ante as alavancas e os botões de um indivíduo alto e moreno; tinha um bigode negro, cheio e uma cicatriz no rosto. Seu aspecto avivou em Corso uma recordação familiar, fugaz, esfumado sem se materializar. Para desespero da mulher gorda, a maquina cuspia uma barulhenta sucessão de moedas.


Makarova trouxe a Corso uma última cerveja. Esta vez La Ponte teve que pagar a sua.
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