A seguir você encontrará disponível a introdução e o primeiro capítulo traduzido do livro O Clube Dumas
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O Clube Dumas
Arturo Perez Reverte
O flash de luz projetou a silhueta do enforcado na parede. Pendurava
imóvel de uma lâmpada no centro do salão, e à medida que o fotógrafo se movia a
seu redor, conduzindo a câmera, a sombra provocada pelo flash se recortava
sucessivamente sobre quadros, vitrines com porcelanas, estantes com livros,
cortinas abertas sobre grandes janelas enquanto caía a chuva.
O juiz instrutor era jovem. Tinha pouco cabelo, bagunçados e molhado,
como a capa de chuva que mantinha sobre os ombros enquanto ditava as
diligências ao secretário que escrevia sentado no sofá, com a máquina portátil
sobre uma cadeira. O teclar ponteava a voz monótona do juiz e os comentários em
voz baixa dos policiais movendo-se pela casa:
-… De pijama, com um roupão por cima. O cordão dessa roupa causou a
morte por enforcamento. O cadáver tem as mãos atadas na parte da frente do
corpo com uma amarra. Seu pé esquerdo calça um chinelo e o outro se encontra
descalço…
O juiz tocou o pé calçado do morto e o corpo girou um pouco, lentamente,
ao extremo do tenso cordão de seda que unia seu pescoço com a lâmpada no
teto. O movimento foi de esquerda à direita, e depois em sentido inverso
e com a volta mais curta até centrar-se de novo na postura original, como uma
agulha magnetizada que recupera o norte trás uma breve oscilação. Ao se
afastar, o juiz se inclinou para evitar um policial fardado que, sobre o
cadáver, buscava pelas digitais. Havia um vaso quebrado no chão e um livro
aberto por uma página sublinhada com lápis vermelho. O livro era um velho
exemplar de “O Visconde de Bragelonne”, uma edição barata encadernada em tela.
Inclinando-se sobre o ombro do agente, o juiz olhou o texto sublinhado:
“-Me venderam -murmurou-. Tudo se sabe!
- Tudo se sabe no fim –disse Porthos, que nada
sabia.”
Fez com que o secretário tomasse nota daquilo, ordenou incluir o livro
no sumário, e foi se reunir com um homem alto que fumava ao lado de uma janela
aberta.
- O que você acha? –perguntou ao se aproximar.
O homem alto carregava o emblema da polícia pendurada num bolso de sua
jaqueta de couro. Demorou em responder o tempo necessário para tragar o cigarro
que tinha entre o dedos, antes de joga-lo pela janela sem olhar.
-Quando é branca e vem engarrafada, geralmente trata-se de leite
-respondeu finalmente, crítico, mas não tanto como para que o juiz não
apontasse um sorriso; a diferença da polícia, ele olhava a rua, de onde
continuava chovendo fortemente. Alguém abriu uma porta do outro lado da sala, e
o jato de ar trouxe gotas de água no seu rosto.
-Fechem essa porta –ordenou sem virar-se. Depois falou ao policial-: Há
homicídios que se disfarçam de suicídios.
-E vice-versa –acrescentou o outro tranquilo.
- O que me diz das mãos e da amarra?
- Às vezes temem se arrepender na última hora… De outro modo teria as
atado nas costas.
-Isso não muda as coisas –disse o juiz-. A corda é fina e resistente.
Uma vez que perdeu o equilíbrio, nem com as mãos livres teria a menor
oportunidade.
-Tudo é possível. Com a autópsia saberemos mais.
O juiz voltou a checar novamente o cadáver. O agente das digitais se
levantava com o livro nas mãos.
-É curiosa esta página.
O policial alto encolheu os ombros.
-Eu leio pouco -disse-. Porém esse tal de Porthos é um dos personagens,
não?… Athos, Porthos, Aramis e d’Artagnan contava com o polegar sobre os dedos
de uma mão e ao concluir parou pensativo-. Engraçado. Sempre me perguntei por
que se chamam os três mosqueteiros, se na realidade eram quatro.
- O
vinho de Anjou
O leitor deve se preparar para assistir
A mais sinistra das cenas.
(E. Sue. Os mistérios de Paris)
Chamo-me Boris Balkan e uma vez traduzi A Cartuxa de Parma. Ademais, as
críticas e resenhas que escrevo saem em suplementos e revistas de metade da
Europa, organizo cursos sobre escritores contemporâneos nas universidades de
verão, e tenho alguns livros editados sobre novelas populares do século XIX.
Nada espetacular, temo; sobre tudo, nesses tempos, onde os suicídios se
disfarçavam de homicídios, as novelas são escritas pelo médico de Rogelio
Ackroyd, e muita gente se empenha em publicar duzentas páginas sobre as
apaixonantes aventuras que experimentam olhando-se no espelho.
Porém, vamos nos manter na história.
Conhecia Lucas Corso quando veio a mim com O vinho de Anjou debaixo do
braço. Corso era um mercenário da bibliofilia; um caçador de livros para os
outros. Isso inclui os dedos sujos e a fala fácil, bons reflexos, paciência e
muita sorte. Também uma memória prodigiosa, capaz de recordar em que canto
empoeirado de uma tenda velha se encontra esse exemplar pelo qual pagam uma fortuna.
Sua clientela era seleta e reduzida: vinte livreiros de Milão, Paris, Londres,
Barcelona ou Lausanne, dos que só vendem por catálogo, gastam com seguro e
nunca manejam mais de cinquenta títulos de uma vez; aristocratas de incunábulos
para aqueles que em vez de pergaminho, velho, ou três centímetros mais na
margem da página, pagam milhares de dólares. Chacais de Gutenberg, piranhas de
férias de antiquário, sanguessuga de leilão, são capazes de vender suas mães
por uma primeira edição; mas recebem os clientes em salões com sofás de couro,
vista à Catedral ou ao lago Contanza, e nunca mancham as mãos nem a
consciência. Para isso existem os tipos como Corso.
Tirou do ombro uma bolsa de lona e a pôs no chão, junto com seus sapatos
Oxford sem lustrar, antes de ficar olhando o retrato de Rafael Sabatini que
tenho sobre a mesa de despacho, junto à estilográfica que utilizo para corrigir
artigos e provas. Isso me agradou, pois as visitas geralmente prestam pouca
atenção; o tomam por um velho parente. Eu olhava sua reação e observei que
sorria enquanto sentava-se: uma careta infantil, de coelho na rua; dessas que
captam imediatamente a benevolência incondicional do público em qualquer filme
de desenhos animados. Com o tempo soube que também era capaz de sorrir como um
lobo implacável e fraco, e que podia compor um ou outro gesto segundo exigiam
as circunstâncias; mas isso foi muito mais tarde. Naquele momento estava
convincente, assim que resolvi arriscar um santo e disse:
-Nasceu com o dom do riso –citei, assinalando o retrato e com a sensação
que o mundo estava louco…
O vi mover lentamente a cabeça, com gesto lento e afirmativo, e
experimentei por ele uma simpatia cúmplice que, apesar de tudo que ocorreu
depois, ainda mantenho. Havia tirado de alguma parte, mexendo na embalagem, um
cigarro sem filtro tão enrugado como seu velho casaco e calças de cotelê. Dava
voltas no cigarro entre os dedos, observando-me através dos óculos de aros de
aço torcidos sobre o nariz; com o cabelo, que estava um pouco grisalho,
despenteado na frente. A outra mão se mantinha, do mesmo modo como se sacava
uma pistola oculta, em um dos bolsos: enormes covas, deformados por livros,
catálogos, papéis e –também soube mais tarde- um frasco cheio de gim Bols.
-… E esse foi todo seu patrimônio – completou sem dificuldade a fala,
antes de arrumar-se na poltrona, sorrindo de novo-. Embora, se vou ser sincero,
gosto mais d’O Capitão Blood. Levantei a estilográfico no ar para censura-lo,
severo.
-Faz mal. Scaramouche é a Sabatini o que Os três mosqueteiros são a
Dumas –fiz um gesto breve de homenagem em direção ao retrato-. Nasceu com o dom
do riso… Não há na história da série de aventuras duas linhas comparáveis a
essas.
-Quem sabe esteja certo –concedeu com aparente reflexão, e então pôs o
manuscrito sobre a mesa, em seu carpete protetor com fundo de plástico, uma por
página-. E é uma coincidência que mencionaste a Dumas.
Empurrou o carpete até a mim, de modo que eu pudesse ler seu conteúdo.
Todas as folhas estavam escritas em francês por um lado e havia dois tipos de
papel: um branco, mas amarelado pelo tempo, e outro azul pálido com grade fina,
envelhecido também pelos anos. Cada cor correspondia uma escrita diferente,
embora o do papel azul –desenhada com tinta negra- figurava nas folhas brancas
a modo de anotações posteriores à redação original, cuja caligrafia era menor e
pontuda. Havia quinze folhas no total, e onze eram azuis.
-Curioso –levantei a vista a Corso; me observava com olhos tranquilos
que iam do carpete a mim e de mim ao carpete-. Onde encontrou isso?
Coçou uma sobrancelha, calculando sem dúvida até que ponto a informação
que perguntei o obrigava a fornecer esse tipo de detalhe. O resultado foi uma
terceira careta, desta vez inocente. Corso era um profissional.
-Por aí. Um cliente de um cliente.
-Compreendo.
Fiz uma curta pausa, cuidadoso. Além de precaução e reserva, cautela
significa astúcia. E ambos sabíamos disso.
-Claro que -adiantou- te digo nomes se você pedi-lhos.
Respondi que não era necessário e isso pareceu tranquiliza-lo. Ajustou
os óculos com um dedo antes de pedir minha opinião sobre o que tinha em mãos.
Sem responder em seguida, passei as páginas do manuscrito até chegar à
primeira. O cabeçalho estava em letras maiúsculas, com traços mais grossos: LE
VIN D’ANJOU.
Li em voz alta as primeiras linhas:
“Apres de nouvelles presque désespérées du roi, le bruit de as
convalescence commençait a se répandre dans le camp…”
Não pude evitar um sorriso. Corso fez um gesto de assentimento, me
convidando a dar um veredicto.
-Sem a menor dúvida –disse- isto é de Alejandro Dumas, padre. O vinho de
Anjou: capítulo quarenta e tantos, acredito recordar, d’Os três mosqueteiros.
-Quarenta e dois –confirmou Corso-. Capítulo quarenta e dois.
-É o original? O autêntico manuscrito de Dumas?
-Para isso estou aqui. Para que me diga.
Encolhi um pouco os ombros, a fim de eludir uma responsabilidade que
soava excessiva.
-Porque eu?
Era uma pergunta estúpida, das que só servem para ganhar tempo. A Corso
deveria ter parecido falsa modéstia, porque reprimiu uma careta de impaciência.
-Você é um expert –disse, um pouco seco-. E além de ser o crítico
literário mais influente deste país, sabe tudo sobre a novela popular do século
XIX.
-Esqueceu-se do Stendhal.
-Não me esqueci dele. Li sua tradução de A Cartuxa de Parma.
-Você me lisonjeia.
-Não acredite. Prefiro a de Consuelo Berges.
Ambos sorrimos. Seguia caindo bem em mim, e eu começava a perfilar seu
estilo.
-Conhece meus livros? –aventurei-me.
-Alguns. Lupin, Raffles, Rocambole, Holmes, por exemplo. Os estudos
sobre Valle-Inclán, Baroja e Galdós. Também Dumas: a pegada de um gigante. E
seu ensaio sobre O conde de Montecristo.
-Leu todos esses títulos?
-Não. Só porque trabalho com livros não significa que estou obrigado a
lê-los.
Mentia. Exagerava, ao menos, o aspecto negativo da questão. Aquele
indivíduo pertencia ao gênero conscientizado; antes de ver isso, um olhar sobre
mim a quanto pude encontrar. Era um desses leitores compulsivos que
devoram papel impresso desde a mais terna infância; no caso –pouco provável de
que em algum momento a infância de Corso merecera qualificar-se de terna.
-Compreendo –respondi, para dizer qualquer coisa.
Franziu a testa, um momento, se certificando se esquecia de algo, e
depois tirou os óculos, expirou nos cristais e se pôs a limpá-los com um pano
muito enrugado que extraio dos insondáveis bolsos do casaco. Atrás da falsa
aparência de fragilidade que lhe dava aquela roupa demasiadamente grande, com
seus incisivos de roedor e o ar tranquilo, Corso era sólido com um ladrão
obstinado. Tinha atributos do rosto afiados e sólidos, cheios de ângulos,
emoldurando olhos atentos, sempre dispostos a expressar uma ingenuidade perigosa
para quem se deixava seduzir por ela. Às vezes, sobretudo quando estava quieto,
dava a impressão de ser mais desajeitado e lento do que era na realidade.
Pertencia a essa classe de tipos desamparados a quem os homens oferecem tabaco,
os camareiros oferecem um copo extra e as mulheres sentem desejos de tê-lo.
Depois, quando caía a ficha do que estava ocorrendo, era muito tarde para jogar
a luva. Galopava na distância atacando moscas com sua navalha.
-Voltemos a Dumas –sugeriu enquanto apontava com óculos o
manuscrito-. Alguém capaz de escrever quinhentas páginas sobre ele deveria
reconhecer um ar familiar ante seus originais… Não acha?
Pus uma mão sobre as páginas protegidas em plástico com a unção que um
sacerdote empregaria respeito aos ornamentos do ofício.
-Temo te decepcionar, mas não sinto nada.
Começamo-nos a rir os dois. Corso tinha uma risada peculiar, quase entre
dentes: a de quem não está seguro de que seu interlocutor e ele riam da mesma
coisa. Uma risada atravessada e distante, com algo de insolência pelo meio;
dessas que pairam no ar por muito tempo, até quando se desvanecem. Até mesmo
quando seu proprietário faz que já partiu.
-Vamos por partes –falei. É seu o manuscrito?
-Já disse que não. Um cliente acaba de adquiri-lo, e o surpreende que
até agora ninguém ouviu falar deste capítulo original e íntegro d’Os três
mosqueteiros… Deseja uma autenticação em escrito, e trabalho com isso.
-Me estranha que se ocupe com assuntos menores –era certo; também eu
havia ouvido falar de Corso, antes-. Afinal de contas Dumas, hoje em dia…
Deixei no ar, sorrindo de modo apropriado, com amargura cúmplice; mas
Corso não aceitou a oferta e se manteve na defensiva:
-Meu cliente é amigo –pontualizou, neutro-. Trata-se de um serviço
pessoal.
-Compreendo, mas não sei se vou ser útil a você. Vi alguns originais e
este poderia ser autêntico; embora certificado é outra coisa. Para isso
necessita de um bom grafólogo… Conheço um excelente em Paris: Achille
Replinger. Tem uma livraria especializada em autógrafos e documentos históricos
perto de Saint Germain de Pres… Expert em autores franceses do século XIX,
homem encantador e bom amigo meu –assinalei a um dos quadros pendurados na
parede-. Essa carta de Balzac ele me vendeu faz anos. Caríssima, por certo.
Peguei a agenda a fim de copiar a direção e criei um trajeto para Corso.
Guardou-a em um gastado caderno de anotação cheio de notas e papéis, antes de
extrair do casaco um bloco e um lápis dos que tem uma borracha na ponta. A
borracha estava mordida, igual à de um aluno de escola.
Posso te fazer umas perguntas?
-Claro que sim.
-Conhecia a existência de algum capítulo autografado completo de Os três
mosqueteiros?
Neguei com a cabeça antes de responder, enquanto voltava a colocar o
boné na Montblanc.
-Não. Essa obra apareceu por entregas em Le Siécle, entre março e julho
de 1844… Uma vez composto o texto por um tipógrafo, o manuscrito original foi
para o lixo. No entanto, ficaram alguns fragmentos; pode consulta-los em um
apêndice da edição Garnier de 1968.
-Quatro meses é pouco –Corso mordia a ponta do lápis pensativo-. Dumas
escreveu rápido.
-Nessa época todos escreviam rápido, Stendhal compôs sua Cartuxa em sete
semanas. De qualquer forma, Dumas utilizava colaboradores: negros, em jargão. O
de Os mosqueteiros, vinte anos depois, e em O visconde de Bragelonne, que fecha
o ciclo. Também em O conde de Montecristo e em algumas novelas mais… Essas sim,
você leu, suponho.
-Claro. Como todo o mundo.
-Como todo o mundo em outros tempos, quer dizer –deslizando com respeito
as páginas do manuscrito está longe da época em que uma assinatura de Dumas
multiplicava tiradas e enriquecia editores. Quase todas as suas novelas
apareceram assim, por entregas, com ele continuará no próximo número a pé de
página e o público ficava com a alma em expectativa até o capítulo seguinte…
Embora você já saiba de tudo isso.
-Não se preocupe. Continue.
-Que mais quer que eu diga? No folhetim canônico, a clave do êxito é
simples: o herói, a heroína, tem virtudes ou defeitos que obrigam o leitor a
identificar-se com ele. Se isso ocorre hoje com as telenovelas, imagina-se o
efeito, naquela época sem rádio e nem televisão, sobre uma burguesia cheia de
surpresas e entretenimento, pouco exigente enquanto a qualidade forma ou bom
gosto… Assim o compreendeu o gênio de Dumas, e com sábia alquimia fabricou um
produto de laboratório: umas gotas disso, um pouco daquilo, e seu talento.
Resultado: uma droga que criava viciados –assinalei o peito, não sem orgulho-.
Que ainda acredita.
Corso tomava notas. Meticuloso, desaprendido e letal como uma mamba
negra, o definiria depois um de seus conhecidos, quando saiu o nome para agrupamento.
Tinha um modo singular de situar-se frente aos outros, de olhar através dos
óculos torcidos e assentir lentamente com certa dúvida razoável e bem
intencionada; igual uma prostituta ao encarar, tolerante, um soneto sobre
Cupido. Como lhe dando oportunidade de retificar antes que tudo aquilo fosse
definitivo.
Ao cabo de um momento parou e levantou a cabeça.
-Mas você não limita seu trabalho a novela popular. É um crítico
conhecido por outras atividades… –pareceu duvidar, buscando o término-. Mais
sérias. E o próprio Dumas definia suas obras como literatura fácil… Isso soa a
desdém ao público.
Aquele fingimento situava bem a meu interlocutor; era uma de suas
assinaturas, como os quebra-molas no lugar de carros. Colocava as coisas longe,
em aparência sem tomar partido, mas incomodado com pequenos golpes de guerra.
Alguém que se irrita fala, esgrime argumentos e justificações, o que equivale a
mais informação para o adversário. Ainda assim, ou talvez por isso, porque não
nasci ontem e compreendia a tática de Corso, me senti irritado:
-Não caia em clichês –respondi, impaciente-. O folhetim produziu muito
papel desprezível, mas Dumas estava por cima disso. Na literatura, o tempo é um
naufrágio em que Deus reconhece aos seus; o desafio a que citei heróis de
ficção que sobrevivam com a saúde de d’Artagna e seus companheiros,
salvo, talvez, o Sherlock Holmes de Conan Doyle… O ciclo de Os mosqueteiros
constitui uma novela de capa e espada sem dúvida “folhetinesca”; encontrará aí
todos os pecados próprios da sua classe. Porém, é também, um folhetim ilustre,
mais além dos outros níveis habituais do gênero. Uma história de amizade e
aventuras que permanece fresca apesar da mudança de gostos e do estúpido
descrédito em que há caído a ação. Parece que, desde Joyce, devamos
resignar-nos a Molly Bloom e renunciar a Nausicaa pelo naufrágio, em uma praia…
Nunca leu meu opúsculo Sexta-feira ou a agulha de marear?… Se tratando de
Ulises, fico com o de Homero.
Levantei um ponto o tom ao chegar aí, aceitando a reação de Corso.
Sorria a medida sem soltar-se, mas eu recordava a expressão de seus olhos
quando citei Scaramouche e me sentia em bom caminho.
-Sei a que se refere –disse por fim-. Suas opiniões são conhecidas e polêmicas,
senhor Balkan.
-Minhas opiniões são conhecidas porque eu fiz com que sejam assim. E
enquanto o público as depreciar, como assegurava você até um momento, talvez
não saiba que o autor de Os três mosqueteiros se bateu na rua durante as revoluções
de 1830 e 1848 e proporcionou armas, pagando-as de seu bolso, a Garibaldi… Não
esqueça que o padre de Dumas era um conhecido general republicano… Aquele homem
declarava amor ao povo e a liberdade.
-Embora seu respeito pelo rigor dos atos fosse relativo.
-Isso é o de menos. Sabe que respondia a quem o acusavam de violar a
história?…”A violou, de verdade. Porém eu faço belas criaturas”.
Pus a estilográfica sobre a mesa e me levantei, achegando-me as estantes
de livros que cobrem as paredes de meu escritório. Abri uma para escolher um
volume encadernado em capa escura.
-Como todos os grandes fabuladores –Acrescentei-, Dumas era um
mentiroso… A condessa Dash, que o conheceu bem, desse em suas memórias que lhe
bastava contar uma anedota apócrifa para que essa mentira se desse por
histórica. Verifique com o cardenal Richelieu: foi o homem mais grande de seu
tempo; mas depois de passar pelas trabalhosas mãos de Dumas, sua imagem chega
até nós deformada e, sinistra, com a degustação de um vilão… –me voltei a
Corso, o livro nas mãos-. Conhece este? Gatien de Courtilz de Sandras o
escreveu, um mosqueteiro que viveu no final do século XVII. São as memórias de
Artagnan, o autêntico: Carlos de Batz-Castelmore, conde de Artagnan. Um gascão nascido
em 1615 que, em efeito, foi mosqueteiro; ainda que não viveu na época de
Richelieu, senão na de Mazarino. Morreu em 1673 durante o local de Maestrich
quando, igual que seu homônimo de ficção, ia a receber o bastão de marechal…
Como vês, as violações de Alejandro Dumas criaram lindas criaturas… No escuro
gascão de carne e osso, cujo nome a história havia esquecido, o gênio do
novelista o converteu em uma lenda gigante.
Corso permanecia em seu assento, escutando. Pus em suas mãos o livro e o
olhou com interesse e cuidado. Passava lentamente as páginas, tocando-as apenas
com as pontas dos dedos, sem tocar mais que a borda em cada folha. De vez em
quando se detinha em um nome ou um capítulo. Atrás dos cristais de seus óculos,
os olhos atuavam seguros e rápidos. Em certo momento, parou para anotar as
datas no bloco:
“Memoires de M d’Artagnan, G. de Courtilz, 1704, P. Rouge, 4 volumes
in-12, 4ª. Edição”. Depois fechou o livro para me olhar.
-Você disse: era um trapaceiro.
-Sim –disse enquanto me assentava novamente- Mas genial. Onde outros se
limitaram a plagiar, ele construiu um mundo novelesco que continua até hoje… “O
homem não rouba, conquista”, repetia frequentemente… “Faça de cada província
que tome um anexo de seu império: impõe-nos suas leis, a resolução de temas e
personagens, estenda seu espectro sobre ela…” Que outra coisa é a criação
literária? Em seu caso, a história da França forneceu o recife. O truque
era extraordinário: respeitar o quadro e alterar o quadro, roubar sem
escrúpulos o tesouro que se oferecia… Dumas converte aos personagens principais
em secundários, os que foram humildes se tornam protagonistas e cria páginas
inteiras com incidentes que na crônica real ocupam duas linhas… Jamais existiu
o pacto de amizade entre d’Artagnan e seus companheiros, entre outras coisas
porque alguns nem se conheciam… Tampouco existiu um conde da Fère, ou melhor,
houve muitos, e nenhum se chamava Athos. Porém Athos existiu; se chamava
Armando de Sillegue, senhor de Athos, morreu de uma ataque em um duelo antes de
que d’Artagnan entrou nos mosqueteiros do rei… Aramis foi Henri de Aramitz,
escudeiro, abatedor leigo na senescalia de Oloron, em 1640 nos mosqueteiros que
mandava seu tio. Terminou retirado em suas terras, com mulher e quatro filhos.
E quanto a Porthos…
-Não me diga que também existiu um Porthos.
-Existiu. Chama-se Isaac de Portau e teve que conhecer a Aramis, o
Aramitz, porque entrou nos mosqueteiros três anos depois que ele, em 1643.
Segundo a crônica morreu prematuramente: enfermidade, na guerra, ou num duelo
como Athos.
Corso percorreu os dedos sobre as Memórias de d’Artagnan e moveu um
pouco a cabeça. Sorria.
-De um momento a outro vai me dizer que também existiu uma Milady.
-Exato. Mas não se chamava Ana de Brieul, nem foi duquesa de Winter.
Tampouco levava uma flor de lis marcada no ombro, ainda que fosse agente de
Richelieu. Chamava-se condessa de Carlille, e o roubou duas ponteiras de
diamante em um baile ao duque de Buckhingam… Não me olhe com essa cara. La
Rochefoucauld conta isso em suas memórias. E La Rochefoucauld era um homem
muito sério.
Corso me observava por frieza. Não parecia daqueles que se admiram com
facilidade e muito menos em se tratando de livros; mas se mostrava
impressionado. Depois, quando o conheci melhor, cheguei a perguntar-me se a
admiração era sincera, ou uma de suas retorcidas habilidades profissionais.
Agora que tudo terminou, acredito estar seguro: eu era uma fonte a mais de
informação e Corso dava fio à pipa.
-Tudo isso é muito interessante -disse. –Se vai a Paris, Replinger
poderá lhe contar muito mais que eu –olhei ao original sobre a mesa.
-Ainda que ignoro se compensa o gasto de uma viagem… Quanto pode valer
esse capítulo no mercado?
Mordeu de novo a ponta do lápis, compondo gesto asséptico:
-Não muito. Na verdade vou por outro assunto.
Sorri com tristeza cúmplice. Entre minhas escassas posses se contam um
Quixote de Ibarra e um Volkswagen. Claro que, o automóvel me custou mais que o
livro.
-Se ao que se refere –disse, em tom solidário.
Corso fez um gesto que podia ser interpretado como resignação. Seus
caninos projetavam uma careta ácida:
-Até que os japoneses se fartem de Van Gogh e Picasso –sugeriu- e o
invertam todos em livros raros.
Inclinei-me para trás no assento, escandalizado.
-Que Deus nos ampare quando isso ocorra.
-Isso diga por você –me olhava com sarcasmo através de suas lentes
torcidas-. Eu quero ficar rico logo, senhor Balkan.
Guardou o bloco no bolso do casaco enquanto se levantava, colocando no
ombro a bolsa de lona. Não pude deixar de notar seu aspecto equivocadamente
suave, com aqueles óculos metálicos nunca estáveis sobre o nariz. Mais tarde
soube que vivia só, entre livros próprios e alheios, e além de caçador de
livros raros era experiente em jogos de simulação napoleônicos, capaz de
reproduzir sobre um tabuleiro, de memória, a ordem de batalha exata na véspera
de Waterloo: uma história familiar, algo estranho, que até muito depois não
cheguei a conhecer tudo. Hei de admitir que, lembrei-me disso, Corso parece
desprovido do menor atrativo. E, portanto, aderindo ao rigor com que conto esta
história, devo declarar que em sua aparência estranha, justo naquela falta de
jeito que podia ser –ignoro como ele conseguia- caustica e desamparada, ingênua
e agressiva ao mesmo tempo, aceitava isso que as mulheres chamam “acompanhante”
e os homens simpatia. Sentimento positivo que se esfuma quando
apalpamos o bolso para comprovar que acabam que nos roubar-nos a carteira.
Corso pegou o manuscrito e o acompanhei até a porta. Parei para estender
a mão no salão de entrada, onde os retratos de Stendhal, Conrad e Valle-Inclán
na cruel litografia que a comunidade de vizinhos, com meu voto contra, decidiu
pendurar faz uns meses no final da escada.
Só então me animei a formular a pergunta:
-Confesso-te que sinto curiosidade por saber onde encontraram isso.
Parou, indeciso, antes de responder. Sem duvida analisava os prós e
contras. Porém eu havia recebido-o amavelmente e estava em dívida comigo.
Também poderia voltar a precisar de mim, e isso não o deixava opções.
-Talvez você o conhecia –respondeu por fim-. O manuscrito foi comprado
pelo meu cliente de um tal Taillefer.
Permiti-me uma careta de surpresa, sem exageros.
-Enrique Taillefer? O editor?
Seu olhar vagava pelo salão. Depois moveu a cabeça uma vez, de acima abaixo.
-Ele mesmo.
Ficamos em silencio os dois. Corso encolheu os ombros, e eu sabia muito
bem porque. A causa podia ser encontrada nas páginas de sucesso de qualquer
jornal. Enrique Taillefer estava morto uma semana. Haviam-no encontrado
enforcado no salão de sua casa: o cordão do robe de seda em torno do pescoço e
os pés girando no vazio, sobre um livro aberto e um vaso de porcelana feito em
pedaços.
Algum tempo depois, quando tudo terminou, Corsou aceitou a contar-me o
resto da história. Posso assim reconstruir agora com fidelidade razoável certos
acontecimento que presenciei: o encadeamento de circunstâncias que conduziram
ao fatal resultado e la solução do enigma em torno ao Clube Dumas. Graças às
confidências do caçador de livros posso chamar dr. Watson nesta história e
contar-lhe que o seguinte ato se iniciou uma hora depois de nossa
entrevista, no bar de Makarova. Flavio La Ponte, sacudindo a agua de cima, foi
acordar no bar, junto de Corso, e pediu uma cerveja enquanto recuperava a
respiração. Depois olhou a rua rancoroso e satisfeito, como se acabasse de
cruza-la em meio a fogo de atiradores. Chovia como uma praga bíblica.
-A razão comercial Armengol e Filhos, Livros Antigos e Curiosidades
Bibliográficas pensa em processá-lo –disse, a barba loira e grisalha com espuma
de cerveja em torno da boca-. Telefone para seu advogado.
-De que me acusam? –perguntou Corso. –De enganar uma mulher velha e
roubar sua biblioteca. Juram que esse acontecimento comprometê-los-ia.
-Pois que acordassem cedo, como fiz eu.
-Eu disse isso, mas estão furiosos. Quando viram o lote, haviam trazido
Persiles e o Foro Real de Castilha. Além do mais, fizeram uma taxação do resto
muito acima de seu valor. Agora a proprietária se nega a vender. Pede o dobro
do que oferecem… –bebeu um gole da cerveja enquanto virava um olho, risonho e
cúmplice-. Construir uma biblioteca, se chama essa bonita manobra.
-Sei como se chama –Corso descobria os dentes em um sorriso maléfico-. E
Armengol e Filhos sabem também.
-Uma crueldade desnecessário –disse La Ponte, objetivo-. Porém, o que
mais os dói é o Foro Real. Dizem que rouba-lo foi um golpe baixo.
-Ali eu deixaria: dados latinos de Díaz de Montalvo, sem indicações
tipográficas porém impresso em Sevilla, Alonso del Puerto, possivelmente 1482…
–ajustou os óculos com o dedo para olhar seu amigo-. O que acha?
-A mim, perfeito. Porém estão muito nervosos.
-Que tomem um chá.
Era hora do aperitivo. Havia poucos lugares livres no bar e se apertavam
ombro a ombro, entre fumaça de cigarros e rumor de conversações, procurando que
seus cotovelos evitassem os copos sobre a mesa.
-E pelo visto –adiantou La Ponte- o Persiles é a primeira edição.
Encadernação feita por Trautz-Bauzonnet.
-Corso negou com a cabeça.
-Por Hardy. Em tafilete.
-Está certo. De todas as formas garanti que eu não tinha nada haver. Já
sabe que sou alérgico a processos judiciais.
-Mas não à trinta por cento.
O outro levantou uma mão, digno.
-Pare aí. Não misture as maçãs com as laranjas, Corso. Uma coisa é a
linda amizade que temos. Outra muito
diferente, o pão de meus filhos.
-Não tem filhos.
La Ponte fez uma careta provocando-o.
-Dá-me tempo. Ainda sou jovem.
Era baixo, bonito, paquerador e elegante, com pouco cabelo na cabeça; o
organizou um pouco com a palma da mão, estudando seu efeito no espelho do bar.
Depois espiou em torno com olhos profissionais, a procura de eventual presença
feminina. Sempre estava atento a esse tipo de coisa, como a elaborar frases
curtas na conversa. Seu pai, um livreiro muito instruído, o havia ensinado a
escrever textos de Azorín. Poucos recordavam, porém La Ponte seguia escrevendo
como ele. Com muito ponto e seguido. Aquilo o dava certo aprumo dialético na
hora de seduzir as clientes na sua livraria da rua principal, onde guardava os
clássicos eróticos.
-Além disso –adiantou, retornando o fio com Armengol e Filos tenho
assuntos pendentes. Delicados. Rentáveis a curto prazo.
-Também comigo –pontualizou Corso por cima de sua cerveja-. É o único
livreiro pobre com quem eu trabalho. E esses exemplares você que vai vender.
-Bem –La Ponte se dispensava, tranquilo-. Já sabe que sou prático.
Pragmático. Rasteiro.
-Eu sei.
-Imagine um filme do Oeste. Por ser meu amigo, no máximo, aceitaria um
tiro no ombro.
-No máximo –admitiu Corso.
-De qualquer forma, não importa –La Ponte olhava ao redor, distraído-.
Já tenho um comprador para o Persiles.
-Me pague outra cerveja. Por conta da tua comissão.
Eram velhos amigos. Amavam a cerveja com muita espuma e o gin Bols em
sua caneca de barro escuro. Porém sobre tudo, os livros antigos e os velhos
sebos de Madrid de qualidade. Se conheceram muitos anos atrás, quando Corso
ficava em livrarias especializadas em autores espanholas por ordem de um
cliente, interessado em uma Celestina fantasma que alguém citava como anterior
à edição conhecida de 1499. La Ponte não tinha esse livro. Nem sequer houvera
falar deste. Porém, sim, contava com uma edição do Dicionário de raridades e
improbabilidades bibliográficas de Julio Ollero, onde se mencionava o tema. A
conversa sobre livros derivou certa afinidade, rubricada quando La Ponte
começou a fechar sua livraria e ambos esvaziaram todo o esvaziável no bar de
Makarova enquanto trocavam cartões de Melville, a bordo de Pequod, e nas fugas de
Azorín, La Ponte se criou de pequeno. “Chama-me Ismael”, disse ao exceder a
linha de sombra da terceira Bols na garganta seca. E Corso o chamou de Ismael
citando, de memória e em sua honra, o episódio do arpão de Achab:
Três cortes se deram na carne pagã, e o fio para a baleia
branca adquiriu seu templo…
Aquilo foi embebido em devida forma, até o ponto que La Ponte deixou de
olhar as garotas que entravam e saíam do bar jurando a Corso amizade eterna. No
fundo era ingênuo – apesar de seu cinismo militante e a profissão de livreiro
velho que exercia- e ignorava que seu novo amigo dos óculos torcidos executava
uma sutil manobra de ataque: ao procurar nas suas prateleiras havia localizado
um par de títulos sobre os que pensava negociar. Porém certo foi que La Ponte,
com sua barba loira e grisalha, os olhos doces de galã Billy Budd e seus sonhos
de caçador frustrado de baleias, chegou a despertar a simpatia de Corso. Era
capaz, incluso, de recitar a lista completa de tripulantes do Pequod –Achab, Stubb,
Starbuck, Flask, Perth, Parsi, Queequeg, Tasthego, Daggoo, os nomes de todos os
barcos citados em Moby Dick –Goney, Town-Ho, Jeroboam, Jungfrau, Bouton de
Rose, Soltero, Deleite, Raquel… e, além do mais, sabia perfeitamente, prova
suprema, o que era o âmbar cinza. Falaram de livros e baleias. E assim ficou
fundada aquela noite a Irmandade de arpões de Nantucket, com Flavio La Ponte
secretário geral, Lucas Corso tesoureiro, e ambos únicos membros do apadrinhado
tolerante de Makarova, que se negou a cobrar a última rodada para terminar
compartilhando com eles uma garrafa extra de gim.
-Vou a Paris –disse Corso, olhando pelo espelho a uma mulher gorda que
introduzia moedas a cada quinze segundos pela ranhura da máquina de
caça-níqueis, qual a melodia e o movimentos das reivindicações de cores, frutas
e sinos, eram para estar ali, hipnotizada e imóvel exceto a mão que apertava os
botões de jogo, até a consumação dos séculos-. Para tratar do Vinho de Anjou.
Viu seu amigo franzir o nariz e observar de relance. Paris equivalia a
gastos extras, complicações. La Ponte era um livreiro modesto e mesquinho.
-Sabe que não posso permitir isso.
Corso pegava lentamente seu copo.
-Sim pode –apanhou umas moedas para pagar a volta-. Vou por outro
assunto.
-Outro assunto –repetiu La Ponte, olhando-o com interesse.
Makarova pousou duas cervejas mais no balcão. Era grande, loira e
quarentona, com o cabelo curto e um piercing na orelha, lembro de quando
navegava a bordo de um pesqueiro russo. Usava calças estreitas e camisa
arremangada até os ombros, e seus bíceps excessivamente fortes não eram o único
traço masculino que podia cheirar nela. Sempre tinha um cigarro acendido no
extremo da boca, consumindo ali. Com seu ar báltico e sua forma de se mover,
parecia um funcionário mecânico de uma fábrica de rolamentos de Leningrado.
-Li o livro –disse a Corso desmanchando os “erres”. Ao falar, a
cinza do cigarro caía sobre sua camisa úmida-. Essa fulana, Bovary. Pobre
idiota.
-Cérebro que captou o fundo do assunto. Makarova enxugou o balcão com um
pão.
Desde o outro extremo do bar, Zizi a vigiava enquanto fazia soar a caixa
registradora. Era o oposto de Makarova: muito mais jovem, pequena e ciumenta.
Às vezes, a ponto de fechar, brigavam a golpes, borrachas, ante os últimos
paroquianos de confiança. Em certa ocasião, trás uma dessas brigas e com um
olho roxo, Zizi havia posto terra no meio, vingativa e furiosa. Até que voltou,
três dias mais tarde, as lágrimas de Makarova estiveram fazendo glup-glup ao
cair dentro dos copos de cerveja. Aquela noite fecharam rápido e as viram indo
abraçadas, se beijando nos portões feitos duas jovens apaixonadas.
-Se vai a Paris –La Ponte assinalou a Corso com um movimento de cabeça-.
Tirar “ases” da manga.
Makarova colheu os copos vazios enquanto olhava a Corso através da
fumaça do cigarro.
-Sempre tem algo escondido –disse, gutural e desapaixonadamente-. Em
alguma parte.
Logo pôs os copos na pia e foi atender outros clientes, balançando os
ombros quadrados. Corso era o único homem que escapava de seu desdém pelo sexo
oposto, quando se negava a cobrar um copo. Mesmo Zizi o olhava com certa
neutralidade. Em uma ocasião em que Makarova foi detida por quebrar a cara de
um guarda em uma manifestação de gays e lésbicas, Zizi havia esperado toda a
noite sentada em um banco na central de polícia. Corso a acompanhou com lanches
e uma garrafa de gin, após recorrer a seus contatos na polícia para suavizar a
situação. Tudo aquilo deixava La Ponte absurdamente ciumento.
-Porque Paris? –perguntou, ainda que tinha a atenção em outro lugar. Seu
cotovelo esquerdo acabava de bater em algo deliciosamente suave. Parecia
encantado ao descobrir que sua vizinha de bar era uma jovem loira, com peitos
enormes.
Corso bebeu outro gole de cerveja.
-Também vou a Sinta, em Portugal –seguia olhando a gorda dos
caça-níqueis, dava um bilhete a Zizi para que o trocasse por moedas-. É coisa
de Varo Borja.
Ouviu seu amigo assoviar entre os dentes: Varo Borja, o mais importante
livreiro do país. Seu catálogo era curto e seleto, e além do mais mantinha uma
sólida reputação como bibliófilo que não se preocupava com gastos.
Impressionado, La Ponte pediu mais cerveja e mais dados, com aquele ar seu de
ignorante que corria de modo automático ao ouvir a palavra livro. Seu caráter,
ainda que mesquinho e covarde confessado, não incluía a inveja salvo no tocante
a propriedade de mulheres bonitas e meio embriagadas. No profissional, aparte a
satisfação de fazer-se com boas peças cobradas com pouco risco, sentia um
sincero respeito pelo trabalho e a clientela de seu amigo.
-Já ouviu falar de As Novas Portas?
O livreiro, que xeretava sem pressa nos bolsos para Corso que pagou
também aquela rodada e estava a ponto de voltar a estudar com mais proximidade
sua vizinha, pareceu esquecer tudo na hora. Tinha a boca aberta.
-Não me diga que Varo Borja quer esse livro…
Corso pousou suas últimas moedas sobre o balcão. Makarova trazia outras
duas cervejas.
-Faz tempo. E pagou uma fortuna por ele.
-Tenho certeza que sim. Só existem três ou quatro exemplares conhecidos.
-Três –Corso precisou. Um estava em Sintra, na coleção Fargas. Outro na
fundação Ungern, de Paris. E o terceiros, procedente do leilão da biblioteca
Terral-Coy, de Madrid, era o adquirido por Varo Borja. Interessadíssimo, La
Ponte se acariciava a barba. É claro que já ouviu falar de Fargas, o bibliófilo
português. E quanto a baronesa Ungern, aquela velha louca tinha ficado
milionária escrevendo livros sobre ocultismo e demonologia. Seu último sucesso,
Isis nua, pulverizava o topo de vendas nas grandes lojas.
-O que eu não entendo –concluiu La Ponte- é o que você que tem haver
nisso.
-Conhece a história do livro?
-Muito por cima –admitiu o outro. Corso molhou um dedo em espuma de
cerveja e se pôs a fazer rabiscos sobre o mármore do balcão:
-Época, meios de XVII. Cenário, Veneza. Protagonista, um impressor
chamado Aristide Torchia, a quem editou o chamado Livro das Nove Portas do
Reino das Sombras, uma espécie de manual para invocar o diabo. Os tempos não
estão para essa literatura: o Santo Oficial consegue, sem muito esforço, que
entreguem-no a Torchia. Acusações: artes diabólicas e os anexos
correspondentes, agravados pelo acontecimento, dizem, de haver reproduzido nove
gravuras do famoso Delomelanicon, o clássico dos livros negros, que a tradição
atribui à mão do mesmíssimo Lúcifer…
Makarova havia se aproximado pelo outro lado do bar e escutava,
interessada, secando as mãos na camisa. La Ponte, ao levantar o copo, parou o
gesto enquanto fazia uma careta instintiva de avidez profissional.
-Qual foi a edição?
-Você pode figurar: fizeram com ela uma bonita fogueira –Corso compôs
uma careta de mal-estar e cruel; parecia lamentar não tem visto a matéria-.
Também contam que ao arder se ouviu gritar ao diabo.
De cotovelos sobre os rabiscos úmidos, junto as alavancas de cerveja a
pressão, Makarova emitiu um grunhido acético. Seu cabelo loiro, nórdico e
viril, era incompatível com superstições e névoas do sul. La Ponte, mais
sugestivo, franziu o nariz em sua cerveja, acometido por repentina sede:
-A quem teve que ouvi-la gritar foi o impressor. Suponho.
-Imagine.
La Ponte se estremeceu imaginando.
-Torturado –prosseguia Corso- com essa honra profissional que a
Inquisição pregava frente às artes do Maligno, o impressor terminou por
confessar, entre uivos e uivos, que continuava um livro, somente um, a salvo.
Em certo lugar escondido. Depois fechou a boca e não voltou a abri-la até que o
queimaram vivo. Mesmo então foi só pra dizer ai.
Makarova dedicou um sorriso a memória do impressor Torchia, ou talvez
aos executores incapazes de arrancar-lhe o ultimo segredo. La Ponte franzia a
testa.
-Disse que só se salvou um livro –objetou-. Porém antes falou de três
exemplares conhecidos.
Corso havia tirado os óculos e os olhava na luz para comprovar a limpeza
dos cristais.
-Aí está o problema –disse-. Os livros têm aparecido e desaparecido
entre guerras, roubos e incêndios. Se ignora qual é o autentico.
-Talvez sejam todos falsos –sugeriu o senso comum de Makarova.
-Talvez. E eu tenho que desvendar a incógnita, averiguando se Varo Borja
tem o original e o deram gato por lebre. Por isso vou a Sintra e a Paris
–ajustou os óculos para olhar a La Ponte-. Eu vou cuidar de passar pelo teu
manuscrito.
O livreiro assentia, pensativo, vigiando por rabo de olho a mulher dos
peitos grandes refletida no espelho do bar.
-Comparado com isso, parece ridículo te fazer perder tempo com Os três
mosqueteiros…
-Ridículo? –Makarova abandonava seu papel neutro para mostrar-se agora
realmente ofendida-. É a melhor novela que já li!
Acrescentou aquilo com uma palmada sobre o balcão do bar, moldando com
rudeza os músculos em seus antebraços nus. Boris Balkan teria gostado de ouvir
isso, pensou Corso. Na particular lista de best-sellers de
Makarova, da que ele mesmo cuidava como assessor literário, a novela de Dumas
compartilha honores estelares com Guerra e Paz, A colina de Watership, ou
Carol, da Highsmith. Por exemplo.
-Tranquilo –disse a La Ponte-. Penso cobras os gastos a Varo Borja.
Ainda que eu diria que teu Vinho de Anjou é autentico… Quem falsificaria uma
coisa assim?
-Há gente pra tudo –apontou Makarova, com sabedoria infinita.
La Ponte compartilhava a opinião de Corso; naquele caso, uma manipulação
resultava absurda. O difundo Taillefer o havia garantido a autenticidade: punho
e letra de dom Alejandro. E Taillefer era de confiança.
-Costumava leva-lo novelas antigas; os comprava todas –bebeu um gole,
deixando escapar um riso pela borda do copo-. Bom pretexto para ver as pernas
da sua mulher. Uma loira tremenda. Espetacular. O caso é que um dia o vejo
abrir uma gaveta. Coloca O vinho de Anjou sobre a mesa. “É seu”, me disse a
queima-roupa, “você se encarregue de uma análise formal e venda
imediatamente…”.
Um cliente chamou a atenção de Makarova em demanda de um bitter sem
álcool e esta o mandou passear. Seguia imóvel no bar, o cigarro
consumindo-se em sua boca e os olhos tampados pelo fumo; pendente da história.
-Isso é tudo? –Perguntou Corso. La Ponte fez um gesto vago.
-Praticamente tudo. Tentei dissuadi-lo, pois conhecida sua afinidade.
Era daqueles capazes de dar a alma em troca de uma rareza. Porém estava
resolvido. “Se não você, será outro”, disse. Aí, é claro, atingiu uma fibra. Me
refiro a fibra comercial.
-Esclarecimento ocioso –disse Corso-. É a única fibra que você conhece.
Em demanda de calor humano, La Ponte voltou para os olhos cor de chumbo
de Makarova; mas desistiu a primeira vista. Alí havia o mesmo calor que um
fiorde noruego às três da madrugada.
-Que bonito é sentir-se querido –disse por fim, despeitado e mordaz.
Sem dúvida o indivíduo do bitter tinha sede, observou
Corso, porque voltava a insistir. Makarova, olhando-o de soslaio e sem mudar de
postura, sugeriu que buscasse outro bar antes que lhe partisse uma sobrancelha.
Depois de pensar um pouco, o outro pareceu compreender a essência da mensagem e
se retirou do meio.
-Enrique Taillefer era um tipo raro –La Ponte arrumava, uma vez mais, o
cabelo sobre a careca incipiente de sua cabeça, sem perder nunca de vista a
loira opulenta no espelho-. Queria que eu vendesse o manuscrito dando publicidade
ao assunto –baixou o tom para salvar inquietudes à loira-. “Alguém levará uma
surpresa”, disse, muito misterioso. Piscando um olho igual a quem se dispõe a
correr uma maratona. E quatro dias depois estava morto.
-Morto –repetiu gutural Makarova, saboreando o término e cada vez mais
interessada.
-Suicídio –declarou Corso; porém ela encolheu os ombros como se entre o
suicídio e o assassinato não tinham grandes diferenças. Havia um manuscrito
duvidoso e um morto seguro: suficiente para justificar a trama.
Ao ouvir do suicídio, La Ponte fez um lúgubre gesto afirmativo:
-Isso dizem.
-Não me parece muito seguro.
-É porque não estou. Tudo é muito raro –franziu outra vez a testa,
ensombrecido, esquecendo o espelho-. Me cheira mal.
-Taillefer nunca te contou como obteve o manuscrito?
-De princípio não o perguntei. Depois era tarde.
-Falou com a viúva?
A alusão despejou a feição do livreiro. Agora sorria de orelha a orelha.
-Te reservo esse episódio –seu tom era de quem recorda um truque
estupendo esquecida no chapéu-. Assim cobra
em espécies. Eu não posso oferecer nem a décima parte do que cobrará de Varo
Borja por seu livro dos Nove Camelos.
-O mesmo farei contigo, quando descobrir um Audubon e te tornes um
livreiro milionário. Me limito a adiar as acusações.
La Ponte voltou a se mostrar machucado. Para um cínico de sua
envergadura, observou Corso, parecia muito sensível na hora do aperitivo.
-Acreditei que me ajudava por amizade –protestou o livreiro-. Já sabe. O
Clube de Arponeiros de Nantucket. Por ali respira tudo isso.
-Amizade –Corso olhou ao redor, esperando que alguém lhe explicasse a
palavra-. Os bares e os cemitérios estão cheios de amigos imprescindíveis.
-De que lado está, maldição?
-Do seu –suspirou Makarova-. Corso sempre está do seu lado.
Desolado, La Ponte comprovou que a mulher dos peitos grandes estava
saindo de braço com um tipo elegante, com andar de modelo. Corso seguia olhando
a gorda do caça-níqueis. Desaparecida sua última moeda, permanecia junto à
maquina, desconcertada e vazia, com as mãos caídas ao longo do corpo. Se
despediu ante as alavancas e os botões de um indivíduo alto e moreno; tinha um
bigode negro, cheio e uma cicatriz no rosto. Seu aspecto avivou em Corso uma
recordação familiar, fugaz, esfumado sem se materializar. Para desespero da
mulher gorda, a maquina cuspia uma barulhenta sucessão de moedas.
Makarova trouxe a Corso uma última cerveja. Esta vez La Ponte teve que
pagar a sua.
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