sábado, 7 de fevereiro de 2015

O Clube Dumas - Capítulo VII

VII. O número um e o número dois

Acontece que o diabo é muito astuto. Acontece
que nem sempre é tão feio como dizem.
(J. Cazotte. O diabo apaixonado)

            Faltavam poucos minutos para a saída do trem de Lisboa quando viu a menina. Corso estava no cais, no pé da escada de seu vagão – Companhia Internacional de Carruagens-Camas- e cruzou com ela entre um grupo de viajantes a caminho da carruagens de primeira classe. Carregava uma pequena mochila e vestia o mesmo casaco azul, porém, no principio, não a reconheceu. Foi capaz de perceber algo familiar somente nos olhos verdes, tão claros que pareciam transparentes, e no seu cabelo curto. Isto o fez a seguir com os olhos um momento, até que desapareceu nos vagões mais para baixo. Soou o sino do trem e, enquanto subia na plataforma e o funcionário fechava a porta às suas costas, Corso reconstituiu a cena: Ela sentada em um extremo da mesa de cafe, na tertúlia de Boris Balkan.



            Avançou o passo, a caminho de seu compartimento. As luzes da estação, desfilavam cada vez mais rápido do outro lado das janelas enquanto o barulho do comboio acompanhava a marcha. Movendo-se com dificuldade na estreita cabine, pendurou o casaco e a jaqueta antes de sentar-se na cama, junto da sua bolsa de lona. Dentro, com As Nove Portas e a capa do manuscrito Dumas, tinha um livro, o Memorial de Santa Helena, de Les Cases:
Sexta-feira, 14 de julho de 1816. O Imperador esteve doente a noite inteira...

            Acendeu o cigarro. De vez em quando, ao passar o trem em lugares iluminados que recortavam o rosto com a rápido intermitência de uma luz estroboscópica, Corso dava uma olhada através da janela antes de desaparecer novamente nos cantos da lenta agonia de Napoleão e dos sofismas de seu carcereiro inglês, sir Hudson Lowe. Lia com a testa franzida, ajustando os óculos sobre a ponta do nariz. Em algumas ocasiões se limitava a contemplar um momento seu próprio reflexo na janela e fazia uma careta trocista dedicada a si mesmo. Nessas alturas e com seu curriculo, era capaz de sentir indignação pelo miserável fim que os vencedores deram ao titãn caído, preso numa rocha no meio do Atlântico. Experiência curiosa, revisar aquilo -acontecimentos históricos e seus próprios sentimentos a respeito- desde a lucidez atual. Tão longe estava o outro Lucas Corso que admirava com reverência o sabre do veterano de Waterloo; a criança que assumia os mitos familiares com belicoso entusiasmo, bonapartista precoce, devorador ávido de livros ilustrados com imagens das campanhas gloriosas, nomes que soavam com toques à carga: Wagram, Jena, Smolensko, Marengo. Olhos arregaladamento abertos e desaparecidos muito tempo atrás, fantasma impreciso que se desenhava as vezes em sua memória, entre as páginas de um livro, e um odor ou som, no cristal escuro de uma janela quando a chuva vinda do País Que Já Não Existe golpeava lá fora, na noite.
            O funcionário passou na porta agitando uma campainha. Meia hora para o fechamento do vagão do restaurante. Corso fechou o livro, vestiu a jaqueta e, depois de pendurar a bolsa de lona no ombro, saiu do compartimento. A passos rápidos, atrás da porta de vai-e-vem, uma fria corrente de ar corria entre a passagem que ia da cama-habitação à seguinte.
            Cruzou, ouvindo o ruído dos amortecedores abaixo de seus pés, para encontrar-se na zona de acentos de primeira classe. Ao esquivar-se de um par de passageiros se fixou no interior do compartimento mais próximo, pouco ocupado. A menina estava ali, perto da porta, vestida com uma jaqueta jersey e jeans, os pés descalços sobre o acento da frente. Enquanto Corso passava levantou os olhos do livro que lia, e seus olhos se encontraram. Não houve nos olhos da jovem sinal algum de reconhecimento, assim que ele passou, apenas iniciado, o breve gesto de cumprimento que estava a ponta de dirigir-lhe de maneira instintiva. Ela deve ter percebido o fato, pois o olhou com curiosidade; mas o caçador de livros já seguia caminho, adiante.
            Jantou a solavancos do vagão, e teve tempo para tomar um café e um copo de gim antes que fechassem o restaurante. A lua despontava com tons de seda crua até o fim da noite, e os postes telefônicos moviam-se com ela, fugazes, criando quadros em contra-luz de um projetor mal ajustado sobre a planície das sombras.
            Voltava a seu vagão quando encontrou a menina no vagão de primeira classe. Havia girado a manivela da janela e se apoiava nela, recebendo no rosto o ar frio de fora. Ao chegar perto, Corso virou-se de costas para evitá-la no estreito corredor. Então ela se voltou para ele.
            -Eu o conheço –disse.
            Vistos de perto, seus olhos eram ainda mais verdes e claros, como cristal líquido. O efeito resultava num luminoso contraste com a pele queimada pelo sol; no fim de março e com aquele cabelo dividido para a esquerda como um menino, lhe dava um aspecto único, desportivo, agradavelmente equivocado. Era alta, magra e flexível. E muito jovem.
            -Verdade –confirmou Corso, parando um momento-. Faz um par de dias. No café.
            Ela sorriu. Novo contraste no rosto, dentes brancos sobre a pele morena. A boca era grande, bem desenhada. Bonita menina, disse Flavio La Ponte acariciando os pelos grizalhos da barba.
            -Você que perguntava por d’Artagnan.
            O ar frio da janela aberta bagunçava seu cabelo curto. Continuava descalça; suas sapatilhas brancas estavam no chão junto ao acento vazio. Lançou um olhar instintivo sobre o título do livro ali abandonado: Aventura de Sherlock Holmes. Uma edição barata, observou. Rústica. A mexicana Editorial Porrúa.
            -Vai pegar um resfriado –disse ele.
            A jovem negou com a cabeça, sorrindo ainda, porém girou a manivela e subiu o vidro. Corso, que ia seguir seu caminho, demorou para pegar um cigarro. Fez como sempre, diretamente do bolso aos lábios e viu que ela observada seu gesto.
            -Você fuma? –perguntou indeciso, parando a mão metade do caminho.
            -As vezes.
            Colocou o cigarro na boca e pegou outro. Era preto, sem filtro, tão enrugado quanto todos os outros. A jovem tomou entre o dedos, observando a marca antes de inclinar-se para que Corso o acendesse, depois do seu, com o último fósforo da caixa.
            -E forte –disse ela expulsando a primeira tragada de fumaça, ainda que não fez nada que Corso esperava. Fumava o cigarro de modo insólito: entre o polegar e o indicador, com a basa para fora-. Viaja neste vagão?
            -Não. No seguinte.
            -Tem sorte de ir num sofá-cama –Apalpou o bolso traseiro dos jeans, indicando uma carteira inexistente-. Quem dera se eu pudesse. Menos mal que o compartimento vai meio vazio.
            -É estudante?
            -Algo assim.
            O trem vibrou com um estrondo ao entrar num túnel. A menina se voltou então, como se as trevas de fora atraíssem sua atenção. Inclinava-se sobre o vidro contra seu próprio reflexo, tensa e alerta; e parecia tentar distinguir algo no estrépito de ar comprimido entre as paredes da estreita passagem. Depois, quando o vagão saiu a céu aberto e pequenas luzes voltaram a pontuar a noite a modo de traços breves ao passar do trem, sorriu de novo, absorta.
            -Gosto de trens –disse.
            -Eu também.
            A jovem seguia virada para a janela. Uma de suas mãos tocava o vidro com a ponta dos dedos.
            -Imagina? –comentou. Seu sorriso se tornara evocador; parecia que suscitaram recordações íntimas-. Deixar Paris de noite para acordar em frente ao lago de Veneza, a caminho de Istambul...
            Corso fez uma careta. Que idade tinha? Talvez dezoito, vinte no máximo.
            -Jogar poker –sugeriu entre Calais e Brindisi.
            A menina o estudou com mais atenção.
            -Não parece ruim –meditava um momento-.
            O que acha almoçar com champanhe entre Viena e Nice?
            -Interessante. Como espiar Basil Zaharoff.
            -Ou ficar bêbados com Nijinsky.
            -Roubar as pérolas de Coco Chanel.
            -Flertar com Paul Morand... Ou com o mister Barnabooth.
            Os dois riram. Entre dentes Corso, divertido. Ela, abertamente, apoiava o rosto no vidro frio da janela. Tinha um riso sonoro e franco, de menino, condizente com o corte de cabelo e os luminosos olhos verdes.
            -Já não existe trens assim –disse ele.
            -Eu sei.
            As luzes de um poste de sinalização passaram como relâmpagos. Depois foi um cais mal iluminado, deserto, com um rótulo ilegível pela velocidade. A lua subia recortando brutalmente, a intervalos, confusas silhuetas de árvores e telhados. Parecia voar paralela ao trem, empenhada com ele em um caminho alocado e sem objetivo.
            -Como se chama?
            -Corso. E você?
            -Irene Adler.
            A estudou de cima abaixo e ele suportou a examinação, impassivel.
            -Esse não é um nome.
            -Tampouco é Corso.
            -Está errada. Sou Corso. O homem que corre.
            Inclinou um pouco a cabeça, sem responder, observando os pés descalços da menina sobre o carpete do corredor. Adivinhava o olhar fixo nele, estudando sua aparência, e –fato singular, tratando-se de Corso- isso o fez sentir alguma perturbação. Jovem demais, disse a si mesmo. Bonita demais. Maquinalmente, ajustou os óculos enquanto se dispunha a seguir seu caminho.
            -Tenha uma boa viagem.
            -Obrigado.
            Deu uns passos, sabendo que ela o observava se distanciar.
            -Talvez nos veremos por aí –ouvir-a dizer atrás de si.
            -Talvez.
            Impossível. Era outro Corso de volta a casa, incômodo, com a Grande Armada a ponto de fundir-se na neve; o incêndio de Moscovo impregnava-se na sola de suas botas. Não ia afastar-se daquele modo, assim que parou e girou sobre os calcanhares. Ao fazê-lo, sorria como um lobo magro.
            -Irene Adler –repetiu, fingindo estar tentando se recordar-... Estudo em Escarlate?
            -Não –respondeu ela, com calma-. Um Escândalo na Boemia... –agora sorria também, e seu olhar era um traço de esmeralda na penumbra do corredor-. A Mulher, querido Watson.
            Corso deu uma palmada na testa, como se acabasse de vir a ele.
            -Elementar –disse. E teve a certeza de que se encontrariam de novo.
           
            Corso esteve em Lisboa menos de cinquenta minutos; o tempo exato para ir da estação de Santa Apolônia a do Rossío. Uma hora e meia mais tarde pisava no cais de Sintra abaixo de um céu de nuvens baixas que difuminavam, monte acima, as melancólicas torres cinzas do castelo Da Pena. Não havia táxis a vista, e subiu andando até o pequeno hotel situado em frente das grandes chaminés do Palácio Nacional. Eram dez da manhã de quarta-feira e a esplanada estava livre de turistas e carros; nao teve problema em conseguir um quarto com vistas a paisagem quebrada, espessa e verde, donde despontavam telhados e torres das velhas casas, entre jardins cententenários cobertos de pedra.
            Depois do banho e um café perguntou pela Quinta da Solidão, e a funcionário do hotel indicou o caminho, rua acima. Tampouco havia táxis na explanada, senão um par de carroças; Corso acertou o preço e minutos depois passava em baixo dos rendilhados de pedra neomanuelinos da Torre da Regaleira. Os cascos do cavaro ressoavam nas cavidades dos muros sombrios, nos riachos e fontes por onde corria a água; entre a hedera espessa cobrindo as paredes, taludes, troncos de árvore, escadas de pedra atapetadas de musgo e antigos azulejos das quintas abandonadas.
            A Quinta da Solidão era um edifício retangular do século XVIII, com quatro chaminés e uma fachada cujo reboco ocre estava descolorido com manchas e escorridos. Corso desceu do carro e ficou um momento observando o lugar antes de abrir o portão de ferro. A um e a outro lado, rematando o muro sobre colunas de granito, havia duas estátuas de pedra verde escura, esmoecida. Uma representava um busto de mulher; a outra parecia idêntica, porém de feições ocultas coberta da hedera que subia até ela, inquietante parasita que se apossara do rosto, fundindo-se com os traços modelados por baixo.
            Ao caminhar até a casa escutou o som dos seus passos sobre as folhas mortas. Era um caminho ladeado por estátuas de mármore, quase todas caídas e quebradas juntos aos pedestais vazios. O jardim estava completamente abandonado, invadido pela vegetação que subia pelos bancos e miradouros, cujos ferros forjados oxidavam a pedra coberta de musgo. Na esquerda, junto a um lago cheio de plantas aquáticas, uma frente de azulejos quebrados albergava um anjinho bochechudo, de olhos vazios e mãos mutiladas, que dormia com a cabeça sobre um livro e cuja boca entreaberta manava um fiozinho de água. Tudo dava a impressão de uma infinita tristeza, da  qual Corso não pode escapar. Quinta de Solidão, repetiu. O nome era adequado.
            Subiu pela escada de pedra até a porta, levantando o olhar. Entre sua cabeça e o céu cinza, um antigo relógio de sol não marcava hora alguma em suas cifras romanas. Tinha uma legenda: Omnes vulnerant, postuma necat.
            Todas ferem, leu. A última mata.

            -Você chegou a tempo –disse Fargas- Para a cerimonia.
            Corso apertou sua mão, um pouco desconcertado. Víctor Fargas era alto e magro como um cavalheiro de Greco; tanto que parecia mover-se, dentro da larga camisa de lã grossa, igual uma tartaruga em sua concha. Usava um bigode cortado com exatidão geométrica, as calças formavam bolsas nos joelhos, e os sapatos eram reluzentes, de um modelo antigo, gasto pelo uso. Isso foi o que Corso assimilou a primeira vista, antes que sua atenção se desviar para a enorme casa vazia, as paredes nuas, as pinturas dos tetos espalhadas em lagunas bolorentas, roídas pelo gesso e a umidade.
            Fargas olhou ao recém chegado de cima abaixo.
            -Suponho que aceitará um conhaque –disse por fim, a modo de conclusão depois de íntimo raciocínio, andando ligeiramente, sem se preocupar se Corso o seguia ou não. Passaram juntos em outros quartos, também vazios, ou com restos de móveis inutilizados encostados num canto. Dos tetos, ao extremo de cabos elétricos, pendiam casquilhos nus ou lâmpadas empoeiradas. As únicas divisões com aspecto de estarem em uso eram dos salões que comunicavam por uma porta de correr, com escudos de armas esmerilados no vidro, cuja folhas abertas mostravam um panorama de paredes vazias com marcas de objetos que outrora as adornaram impressas no velho papel: desenhos retangulares de quadros desaparecidos, contornos de móveis, pregos enferrujados, pontos de luz para lâmpadas inexistentes. Sobre aquela triste paisagem gravitava um teto pintado imitando uma abóboda de nuvens com a representação, no centro, do sacrifício de Abraão: um velho patriarca de trintas estaladas cuja mão, armada de um punhal e a ponto de abater—se sobre um loiro menininho, era detido por um anjo com asas enormes. Sob a falsa abóboda se abria uma porta-janela, suja e com alguns vidros substituídos por recortes de cartão, que dava ao terraço e para a parte traseira do jardim.
-Doce lar-disse Fargas.
Era uma ironia formulada sem excessiva convicção. Parecia que o dono da casa a tivesse utilizado muitas vezes e nem ele mesmo confiava no seu efeito. Falava castelhano com forte e distinguido sotaque português, e movia-se sempre muito lentamente, talvez por causa de sua perna inválida, como aquelas pessoas que possuem uma eternidade diante de si.
-Conhaque –repetiu, concentrado, como se não se lembrasse bem o que os havia levado até ali.
Corso fez um vago gesto afirmativo que Fargas não viu. O vasto salão se fechava do outro lado numa enorme chaminé apagada com uma pequena pilha de troncos. Havia dois caldeirões desemparelhados, uma mesa e um aparador, um candeeiro de petróleo, dois candelabros com velas, um violino em seu estojo e pouco mais. No chão, sobre antigas almofadas desfiadas ou tapetes desbotados pelo tempo, o mais longe possível das janelas e da luz plúmbea que estas deixavam entrar, se alinhavam muitos livros numa ordem perfeita; quinhentos ou mais, calculou Corso. Talvez quase mil. Entre eles, numerosos  códices e incunábulos. Bons e velhos livros em pele ou pergaminho, antigos volumes com tachas nas capas, in-fólios, elzevires, encadernações com gofrados, bulhoes, florões, fechos, lombadas e cantos com letras douradas ou caligrafadas nos scriptórios de mosteiros medievais. Observou também pelos cantos uma dezena de ratoeiras oxidadas. A maior parte, sem queijo.
            Fargas, que remexia no aparador, voltou-se com um copo e uma garrafa de Remy Martin, observando-a em contraluz para verificar seu conteúdo.
            -Dourado sangue de Deus –disse, triunfal-. O do diabo –sorria só com a boca, torcido o bigode à modo dos velhos galãs de cinema; mas seus olhos continuavam fixos e inexpressivos, cobertos de olheira como por uma insônia que começou a durar demais. Corso observou suas mãos finas, de boa linhagem, ao tomar delas o copo de conhaque, cujo fino cristal vibrava suavemente ao levá-lo aos lábios.
            -Bonito copo –elogiou, para dizer algo.
            O bibliófilo concordou, e fez um gesto a meio caminho entre a resignação e a burla de si mesmo, sugerindo uma segunda leitura de tudo aquilo: o copo, os três dedos de conhaque da garrafa, a casa despojada. A sua própria presença ali: elegante, pálido e deteriorado fantasma.
            -Só tenho outro igual –respondeu com tranquila objetividade, como numa confidência-. Por isso os conservo.
            Corso anuiu com um movimento da cabeça. Seu olhar recorreu um momento pelas paredes vazias para voltar a concentrar-se nos livros.
            -Deve ter sido uma quinta muito bonita –disse.
            O outro encolheu os ombros embaixo da camisa. –Sim; foi. Porém com as velhas famílias passa o mesmo que com a civilizações: um dia se esgotam e morrem –olhou ao redor sem ver; parecia que seus olhos refletiam os objetos ausentes-. A princípio, recorremos aos bárbaros para que vigiem o limes do Danúbio, depois os enriquecemos e terminamos transformando-os em  credores... Até que um dia se revoltam e nos invadem, e nos roubam –observou seu interlocutor com repentina desconfiança-. Espero que saiba do que estou falando.
            Assentiu Corso. A essas alturas já deixava flutuar entre ambos seu melhor sorriso de cúmplice.
            -Sei perfeitamente –confirmou-: Botas ferradas pisando porcelana de Saxe. Se refere a isto? Criadas com traje de noite. Operários arrivistas que se limpam o cú com manuscritos com iluminuras.
            Fargas fez um movimento de aprovação. Sorria, satisfeito. Logo andou até o aparador em busca de outro copo.
            -Acredito –disse- que também tomarei um conhaque.
            Brindaram em silêncio olhando nos olhos, semelhantes a dos membros de uma confraria secreta apos estabelecer sinais de reconhecimento. No fim, o bibliófilo indicou os livros e fez um gesto com a mão que segurava o copo, como se superada a prova de iniciação convidara Corso a quebrar uma barreira invisível, aproximando eles.
            -Aí estão. Oitocentos e quatro volumes, dos que já menos da metade vale a pena. –bebeu um pouco antes de passar o indicador pelo bigode úmido olhando ao redor- É uma tristeza que não os tenha conhecido em melhores tempos, alinhados em suas estantes de madeira de cedro... Cheguei a reunir cinco mil. Estes são os sobreviventes.
            Corso, que havia deixado a bolsa de lona no chão, se aproximou dos livros. Sentia uma formigamento na ponta dos dedos por puro reflexo. O panorama era magnífico. Ajustou os óculos para detectar, a primeira vista, um Vasari em quarto de 1588, primeira edição, e um Tractatus de Berengario de Carpi, com encadernação em pergaminho, do século XVI.
            -Nunca imaginei que a coleção Fargas, que figura em todas as bibliografias, estivessem assim. Livros empilhados no chão, sem móveis, contra a parede, em uma casa vazia...
            -É a vida, meu amigo. Mas devo precisar, em minha defesa, que todos se encontram num estado impecável... Eu mesmo os limpo e reviso, procuro arejá-los e mantê-los a salvo de insetos e roedores, da luz, do calor e da umidade. De fato, não faço outra coisa durante o dia.
            -O que aconteceu ao resto?
            O bibliófilo olhou para a janela, fazendo-se também a mesma pergunta. Franzia a testa.
            -Imagine –respondeu, parecendo um homem muito infeliz quando seus olhos voltaram a encontrarem com Corso-. Salvo a quinta, alguns móveis e a biblioteca do meu pai, não herdei mais que dívidas. Cada vez que tive dinheiro, os inverti em livros, e quando meu crédito tocou o fundo, liquidei tudo o que restava: quadros, móveis e louça. Você sabe, creio, o que significa ser um bibliófilo apaixonado; porém eu sou um bibliopata. O sofrimento era atroz só de imaginar em dispersar minha biblioteca.
            -Já conheci gente assim.
            -Verdade?... –Fargas o olhou com curiosidade-. Apesar disto, duvido que se tenha uma ideia exata. Me levantava de noite para vagar como alma penada em frente a meus livros. Falava com eles, acariciava-os entre juramentos de lealdade... Tudo foi inútil. Um dia que tomar a decisão: sacrificar a maior parte, conservando os exemplares mais queridos e valiosos... Nem você nem ninguém compreenderão o que foi aquilo: meus livros pasto dos abutres.
            -Imagino –disse Corso, que não teria importado-se em oficiar semelhantes funerais.
-Imagina? Não. Ainda que vivesse um século não poderia. Separar um dos outros me custou meses de trabalho. Sessenta e um dias de agonia, e também um acesso de febre que quase me matou. Por fim os levaram, e quase pensei que ficaria louco... Lembro como se fosse ontem, embora tenham se passado doze anos.
-E agora?
O bibliófilo mostrou seu copo vazio, como se aquilo simbolizasse algo.
-Faz tempo que tenho que recorrer outra vez a meus livros. Embora não necessite de grande coisa: veem uma vez por semana para fazer limpeza, e trazem-me comida da vila... O dinheiro vai-se quase todo nos impostos que pago ao Estado para conservar a quinta.
            Disse Estado como poderia ter dito roedores ou caruncho. Corso fez uma expressão compreensiva, lançando outro olhar às paredes despidas da casa.
-Pode vendê-la também.
-Verdade –Fargas assentiu com indiferença-. Porém há coisas que você não compreende.
Corso havia se inclinado para pegar um infólio encadernado em pergaminho e o folheava com interesse. De Symmetria de Dúrer, Paris, 1557, reimpressão da primeira edição latina de Nuremberg. Em bom estado e com imagens grandes. Aquilo deixaria Flavio La Ponte louco. Deixaria qualquer um louco.
-De quanto em quanto tempo vende livros?
-Com dois ou três ao ano já me basta. Depois de dar muitas voltar, escolho um volúme e o vendo. Essa é a cerimônia da qual me referí antes de abrir a porta. Tenho um comprador, compatriota teu, que vem um par de vezes ao ano.
-Conheço-o? –aventurou-se Corso.
-Não sei se o conhece –foi a resposta do bibliófilo, sem referir nome algum-. Precisamente, espero sua visita de um dia pro outro, e quando você chegou estava me preparando para escolher a vítima... –moveu uma de suas esguias mãos no ar imitando o movimento da guilhotina enquanto sorria, desiludido-. O que deve morrer para que os outros vivam.
Corso levou o olhar ao teto, em busca da inevitável analogia. Abraão, com uma profunda racha atravessando-lhe o rosto, fazia visíveis esforços para libertar a mão direita, armada de um punhal, que o anjo segurava com pulso firme enquanto, com a outra, dirigia uma severa admoestação ao patriarca. Sob o gume, inclinava a cabeça sobre uma pedra, Isaque aguardava resignado seu destino. Era loiro e rosado, como um efebo dos que nunca dizem não. Mais adianta havia pintada uma espécie de ovelha presa numa sarça, e Corso votou mentalmente o indulto da ovelha.
-Imagino que não há outra solução –disse olhando ao bibliófilo.
-Teria pensando em outra... –Fargas sorriu com evidente rancor-. Mas o leão exige sua parte, os tubarões farejam o sangue e a carniça. Infelizmente não existe mais pessoas como o conde de Artois, que foi rei da França. Conhece essa? O velho marquês de Paulmy tinha sessenta mil volumes e estava arruinado. Para escapar dos credores vendeu sua biblioteca ao conde de Artois, mas este exigiu que o ancião a conservasse até sua morte. Assim, com o dinheiro adquirido, Paulmy pode comprar novos exemplares, enriquecendo uma coleção que já não era sua.
Metia as mãos nos bolsos da calça e passeava junto dos livros, oscilante sobre a perna inválida, olhando-os um a um. Parecia um magro desastrado Montgomery que revistava suas tropas em El Alamein.
-As vezes nem os toco nem os abro –parou, inclinando-se para reacomodar um volúme em sua fila, sobre uma velha almofada-. Me limito a tirar o pó e a contemplá-los durando horas. Conhece a detalhe o que há debaixo de cada encadernação... Repare neste: De revolutionis celestium, Nicolás Copérnico. Segunda edição, Basilea, 1566. Uma bagatela, não é? Como a Vulgata Clementina que tem à sua direita, entre os seis volumes da Poliglota de seu compatriota Cineros e o Cronicarum de Nuremberg. Neste outro lado, observe aquele curioso infólio: Praxis criminis pesquendi de Simon de Colines, 1541. Ou essa encadernação monástica com quatro nervos e bulhões que está olhando. Sabe o que tem dentro? A Lenda Áurea de Jacobo de La Vorágine, Basilea 1493, impressa por Nicolas Kesler.
Corso folheou o livro. Era um exemplar magnífico, também as margens amplas. Devolveu-o a seu devido lugar com cuidado antes de limpar os óculos com o lenço. Aquilo podia arrancar suor da pessoa mais fria.
-Você não está bem da cabeça. Se vendesse tudo isso não teria problemas econômicos.
-Eu sei –Fargas se inclinava para retificar imperceptivelmente a posição do livro-. Mas se vendesse tudo isso já não teria razão pra continuar vivendo. Logo seria inútil deixar de ter problemas.
Corso indicou uma fila de livros muito deteriorados. Havia vários incunábulos e manuscritos, e nenhum era, por sua encadernação, posterior ao século XVII.
-Tem muitas edições antigas de cavalaria...
-Sim. Herdadas do meu pai. Sua obsessão era reunir os noventa e cinco livros da biblioteca de Don Quixote, em especial os citados na expurgação do padre... Obtive dele também esse curioso Quixote que ve junto à primeira edição de Os Lusíadas: um Ibarra de 1780 em quatro capítulos. Além das estampas correspondentes, vem enriquecido com outras de impressão inglesa da primeira metade do século XVIII, seis aguarelas originais e a certidão de nascimento de Cervantes fac-similada e impressa em vitela... Cada um tem suas obsessões. A de meu pai, que foi diplomata e viveu muitos anos na Espanha, era Cervantes. Em outros casos se trata de manias. Há quem não tolera uma restauração, ainda que invisível, ou nunca compra exemplares numerados pra cima do 50... O meu, já deve ter se dado conta, são os intonsos. Percorria leiloes e livrarias com uma régua de medir na mão, e me tremiam as pernas ao abrir um volume virgem ou sem aparar. Leu o conto burlesco de Nodier sobre o bibliófilo? Acontecia-me o mesmo. Apunhalaria de bom grado os encadernadores de guilhotina. E descobrir um exemplar com dois milímetros a mais de branco de página do que o descrito nas bibliografoas canônicas era o cúmulo da minha felicidade.
-Também da minha.
-Parabéns, então. O saúdo como a um irmão de culto
-Não se precipite. Meu interesse não é estético, senão lucrativo.
-Tanto faz. Gosto de você. Sou dos que acreditam que, em questão de livros, a moralidade convencional não existe –estava no outro extremo da sala porém se inclinou um pouco até Corso, com ar de confidência-. Sabe de uma coisa? Como nessa lenda que você tem, a do livreiro assassino de Barcelona, eu também seria capaz de matar por um livro.
-Não o aconselho. Se começa assim, parece algo pequeno, e no final termina um mentido, votando nas legislativas e coisas do gênero.
-Inclusivamente vende os próprios livros.
-Inclusivamente.
Fargas movia tristemente a cabeça; ficou imóvel um momento, com as sobrancelhas franzidas em secretas reflexões. Ao voltar em si, olhou Corso demoradamente, durante um longo momento.
-Oque acaba por nos levar –disse por fim- à questão que me ocupava quando você bateu na porta... Cada vez que encaro o problema sinto o mesma que um padre que renega sua fé... Surpreende-o que use a palavra sacrilégio?
-De maneira nenhuma. Imagino que se trate exatamente disso.
Fargas se retorcia as mãos com gesto atormentado. Seu olhar se deslizou ao redor, pela sala nua e os livros no chão, até parar outra vez em Corso. O sorriso parecia uma farsa, que alguém havia pintado em seu rosto.
-Sim. O sacrilégio só se justifica na fé.
Um crente é o único capaz de cometer-lo e sentir, ao tempo que incorre a ele, a dimensão terrível de seu ato. Jamais experimentaríamos horror profanando uma religião que nos causaria indiferença; seria blasfemar sem um deus, se dando por iludido. Absurdo.
Corso não teve problema em se mostrar de acordo.
-Sei a que se refere. É o Tens-me vencido, Galileu de Juliano o Apóstata.
-Desconheço essa citação.
-É apócrifa. Certo irmão marista costumava contá-la quando eu ia ao colégio, nos avisando sobre os perigos de nos pormos à margem: acabamos crivados de flechas no campo de batalha, cuspindo sangue a um céu sem deus.
O bibliófilo assentiu como se tudo aquilo fosse extremamente próximo a ele. Havia algo de singular no estranho rito da boca e na obcecada fixidez dos olhos.
-Assim que me sinto agora –disse-. Me levanto, incapaz de dormir, e me planto aqui, perto de cometer uma nova profanação –enquanto falava se aproximou de Corso, tanto que este se viu a ponto de retroceder um passo-. A pecar contra eu mesmo e contra eles... Toco um livro, me arrependo, escolho outro e termino devolvendo-o ao seu lugar... Sacrificar um para que os outros vivam, tirar um ramo do tronco e continuar a desfrutar do resto... –mostrou a mão direita-. Preferiria cortar-me um destes dedos.
Ao fazer o gesto, sua mão tremia. Corso moveu a cabeça. Era capaz de escutar; isso formava parte de seu ofício. Inclusive podia compreender. Porem não estava disposto a fazer parte do jogo; aquela não era sua guerra. Como havia dito Varo Borja, ele era um lansquenete a soldo e estava de visita. O que Fargas queria era um confidente ou um psquiatra.
-Ninguém oferecerá um escudo –disse, em tom ligeiro- por uma falange de bibliófilo.
A piada se perdeu no vazio imensa que enchia os olhos do seu interlocutor. Este olhava através de Corso, sem vê-lo. Em suas pupilas dilatadas e ausentes só havia livros.
-Qual escolhe, então? –prosseguiu Fargas. Corso havia colocado a mão no bolso para pegar um cigarro que nesse momento o oferecia, mas o outro ignorava o gesto, absorto, obcecado, sem escutar mais que seu próprio discurso; alheio a tudo menos às alucinações de sua consciência em suplicio-. Após dar muitas voltas, selecionei dois candidatos –tirou dois livros do chão e os pôs na mesa-. Diga-me oque acha.
Corso se inclinou sobre os volumes e abriu um deles. O fez por uma página com imagens, xilografia com três homens e uma mulher trabalhando em uma mina. Era a segunda edição latina do De remetallica de Gergius Agrícola, feita por Froben e Episcopius em Basilea só cinco anos após a primeira impressão em 1556. Emitiu um grunhido de aprovação enquanto acendia o cigarro.
-Que bom que vê que não é fácil escolher –Notava-se que Fargas estava pendente dos gestos de Corso. Olhava-o inquieto, com avidez, enquanto este passava páginas mal lhes roçando com a ponta dos dedos-. Venderei um livro de cada vez; e não qualquer um. O sacrificado deve colocar a salvo todos os outros por seis meses ou mais... O meu tributo ao Minotauro –passou a mão pela testa-. Todos temos um no centro do labirinto... Nossa razão acredita, e impõe seu próprio terror.
-Porque não vende vários livros menos valiosos de uma só vez? Talvez ajunte uma soma que precisa, conservando os mais caros. Seus favoritos.
-Desprezar uns em benefício de outros? –o bibliófilo estremeceu-. Isso é impossível; todos possuem a mesma alma imortal, gozam de idêntico direito para mim. Posso ter favoritos, sem dúvida. Como evitá-los? Porém jamais os distingue com um gesto, com uma palavra que os enalteça frente a seus companheiros menos favorecidos. Ao contrário. Recorde que Deus designou seu próprio filho para o sacrifício; para a redenção dos homens. E Abraão...-pareceu referir-se a pintura do teto, porque sorriu tristemente ao vazio elevando o olhar, não concluindo a frase. Corso tinha aberto o segundo volume, um infólio do século XVIII de pergaminho com e encadernação italiana. Era um belíssimo Virgílio, edição veneziana de Giunta, impressa em 1544. Aquilo fez o bibliófilo voltar a si.
-Lindo, não? –Apressou-se para o arrancar das mãos com impaciência. –
Olhe a página do título, a bordadura arquitetônica que a rodeia... Centro e treze xilografias perfeitas, exceto a da página 345, que tem uma pequena restauração antiga, quase imperceptível, no canto inferior. Por acaso, é a minha preferida, imagine: Eneias nos Infernos, ao lado da Sibila. Onde se viu uma coisa assim? Observe as chamas por trás do muro, a caldeira dos condenados, a ave que devora as estranhas... –o pulso do bibliófilo parecia golpear-lhe, quase visivelmente,nos pulsos e nas têmporas. A voz se tornava mais grave e aproximava o volúme dos olhos para ler melhor. Sua expressão era radiante-.: “Moenia lata videt, triplici circundara muro, quae rapidus flammis ambit torrentibus amnis...”. parou, em êxtase-. O gravador tinha uma linda, violenta e medical concepção do Hades virgiliano.
-Magnífico exemplar –confirmou o caçador de livros, aspirando o fumo do seu cigarro,
-Mais que isso. Toque o papel. Esemplare buono e genuino con le figure assai ben impresse, asseguram os velhos catálogos... –após o acesso febril, a expressão de Fargas voltava a sumir no vazio; de novo estava absorto, abismado e perdido nos cantos escuros de seus pesadelos-. Creio que venderei este.
Corso expeliu o fumo com impaciência.
-Não entendo. É óbvio que é um dos seus favoritos. E o Agrícola também. Treme as mãos quando os toca.
-As mãos? Diga melhor que a alma se queima com os tormentos do inferno. Pensei que havia explicado-lhe... O livro para o sacrifício não pode nunca ser indiferente para mim. O que significaria esse doloroso ato, em outro caso? Uma sórdida transação segundo as leis do mercado, vários baratos a troco de um caro... –negou com violência, despectivo. Olhava raivosamente ao redor, buscando a quem lançar seu desdém-. São os mais amados, quem brilhou entre outros por sua beleza, pelo amor que souberam inspirar, os que tomo na mão e acompanho até o tempo do sacrifício dele... A vida pode despojar-me, é certo. Mas não me transformará num miserável.
Deu uns passos sem rumo pela sala. O triste cenário, seu coxear, a jaqueta de lona e as velhas calças acentuavam seu aspecto fadigado e frágil.
-Por isso permaneço nesta casa –prosseguiu-. Entre seus muros vagam as sombras dos meus livros perdidos –havia parado diante da lareira, olhando a miserável lenha empilhada -.
As vezes sinto que vêm exigir reparo na minha consciência... Então, para os aplacar, pego esse violino que vê aí, e me ponho a tocar durante horas; passeando no escuro pela casa, com um condenado... –voltou-se a olhar para Corso, recortando em contraluz sobre o vidro sujo da janela-. O bibliófilo errante.
Dirigiu-se lentamente até a mesa e pôs uma mão em cima de cada livro, como se até esse momento houvesse atrasado o momento de tomar uma decisão. Agora sorria, inquisitivo.
-Qual escolheria, se estivesse no meu lugar? Corso se agitou, desconfortável.
-Deixe-me imparcial. Tenho a sorte de não estar no seu lugar.
-Você disse: a sorte. Fina apreciação. Um estúpido me invejaria, suponho. Todo esse tesouro em casa... Porém não me disse qual vender. Que filho irá ao sacrifício –mudou subitamente a expressão, angustiado; parecia que algo doesse por dentro, na carne e na consciência-... Caia sobre mim seu sangue –disse em voz muito baixa e rouca- até a sétima geração.
Repousou o Agrícola no seu lugar sobre a almofada e acariciou o pergaminho do Virgílio enquanto murmurava “seu sangue” entre dentes. Tinha os olhos úmidos e o tremor de suas mãos parecia incontrolável.
-Creio que venderei este –insistiu.
Se Fargas não estava louco ainda, ficaria logo. Corso olhou as paredes nuas, as marcas dos quadros sobre o papel de parece com manchas de umidade. A improvável sétima geração o traia sem cuidado. O mesmo que no seu próprio caso, o de Lucas Corso, os Fargas morreriam ali. Descansariam, por fim. O fumo do cigarro ia até as deterioradas pinturas do teto, reto como o fumo de um sacrifício em um amanhecer tranquilo. Lançou um olhar pela janela, ao jardim invadido por ervas daninhas, buscando a alternativo de um cordeiro preso nas sarças, porém só havia livros. O anjo soltou a mão que segurava a faca e afastou-se chorando. Com a música em outra parte, o doido.
Corso acabou o cigarro e atirou-o na lareira. Estava cansado e sentia frio embaixo do sobretudo. Havia escutava muitas palavras entre aquelas paredes nuas, e se alegrou de não ver espelhos que refletiam a expressão de seu rosto. Olhou o relógio com gesto mecânico, seu fixar-se na hora. Com uma fortuna presa sobre as velhas almofadas e tapetes, Victor Fargas havia cobrado com juros seu estranho preço em piedade. No que dizia respeito a Corso, já era hora de falar de negócios.
-E as Nove Portas?
-O que tem ele?
-É o que me trouxe aqui. Suponho que recebeu minha carta.
-Sua carta? Sim, claro. Lembro. Só que, com tudo isto... Desculpe, As Nove Portas, claro.
Olhou ao redor, atordoado, sonâmbulo daqueles que acaba de arrancar-se do sonho. Parecia infinitamente fadigado, no final de um longo esforço. Levantou um dedo, exigindo um momento para pensar, antes de dirigir-se para um dos cantos do salão. Ali, sobre um desbotado tapete francês estendo no chão e em cujos restos Corso reconheceu a vitória de Alexandre sobre Dário, se alinhava entre centenas de volumes.
-Sabia –perguntou Fargas apontando a cena representada no Gobelin- que Alexandre designou o cofre dos tesouros de seu rival para guardar os livros de Homero?- moveu a cabeça complacido, observando o desfiado perfil do macedônio. Irmão bibliófilo. Bom menino.
A Corso pouco importava os interesses literários de Alexandro Magno. Tinha-se posto de cócoras e olhava os títulos impressos em alguns volumes e cantos. Todos eram antigos tratando de magia, alquimia e demonologia: Les trois livres de l’Art, Destructor omnium rerum, Disertazioni sopra le apparizioni de’ spiriti e diavoli, De origine, moribus et rebus gestis Satanae...
-O que acha? –perguntou Fargas.
- Não estão mal.
O riso triste do bibliófilo fez-se ouvir. Havia ajoelhado-se sobre o tapete, junto de Corso, e tocava os livros mecanicamente, certificando-se de que nenhum havia movido-se um milímetro desde a último vez que revistou-lhes.
-Nada mal, mesmo. Ao menos dez são exemplares raríssimos... Toda essa parte da biblioteca herdei de meu avo, aficionado pelas artes herméticas, astrólogo aficionado e maçom... Olhe. Este é i, clássico, o Dicionário Infernal de Collin de Plancy, na primeira edição de 1842. E esta é a impressão de 1571 do Compendi dei secreti, de Leonardo Fioravanti... Aquele dozavo tão curioso é a segunda edição do Livro dos Prodígios –abriu outro, mostrando-lhe a Corso uma gravura-. Repare em Isis... Sabe qual é este?
-Claro. O Oedipus Aegyptiacus de Athanasius Kircher.
-Exato. A edição romana de 1652 –Fargas devolveu o livro a seu lugar e tomou outro cuja encadernação veneziana era bem conhecida por Corso: pele negra, cinco nervos, sem título e com um pentáculo na capa-. E aqui está oque busca: De Umbrarum Regni Novem Portis... As noves portas do reino das sombras.
Involuntariamente, Corso estremeceu. Ao menos no aspecto exterior, aquele volume era idêntico ao que levava na bolsa de lona. Fargas pôs os livros em suas mãos e ele se levantou enquanto passava as folhas. Fiéis como gotas d’água, ou quase. Este estava um pouco deteriorada a pele da capa posterior, e no lomo a antiga marca de uma etiqueta que fora posta e depois arrancada. O resto era tão impecável como no exemplar de Varo Borja. Até a gravura do número VIIII, estava intacta.
-Completo e em bom estado –disse Fargas, interpretando corretamente os gestos de Corso- Leva três séculos e meio dando voltas no mundo, e quando se abre parece tão fresco como se tivesse sido impresso agora... Poderia se dizer que o impressor fez um pacto com o diabo.
-Talvez fez –sugeriu Corso.
-Não me importaria de conhecer a fórmula. – O bibliófilo abarcou com um gesto o desolado salão e as fileiras de livros do chão.
-Minha alma em troca de conservar isto tudo.
-Pode tentar –Corso apontou As Nove Portas. – Dizem que a fórmula esta aí.
-Nunca acreditei nessas baboseiras. Mas talvez seja o momento de começar. Não acha? Vocês tem um provérbio na Espanha: os perdidos ao rio.
-O exemplar está perfeito? Viu algo estranho?
-Nada. Não falta folhas e as gravuras seguem em seu lugar: nove e a página de título, tal e como o adquiriu o meu avó no começo do século. Coincide com os catálogos e com os outros dois exemplares: o Ungern de Paris e o Terral-Coy.
-Não é mais Terral-Coy. Agora é coleção Varo Borja, Toledo.
O olhar do bibliófilo se tornou perspicaz.
Corso colocou-se em alerta.
-Disse Varo Borja? –esteve a ponto de dizer algo, mas se arrependeu no útimo instante-. Uma coleção notável. E conhecida –deu nove passos sem rumo antes de olhar os livros alinhados sobre o tapete-. Varo Borja...-repetiu pensativo-. Especialista em demonologia, não é? Um livreiro muito rico. Há anos que está atrás dessa Nove Portas que você tem em mãos; sempre disposto a pagar qualquer preço... Não sabia que tinha conseguido outro exemplar. E você trabalha para ele.
-Ocasionalmente –admitiu Corso.
O outro moveu um par de vezes a cabeça, perplexo, antes de fixar sua atenção, outra vez, no livro do chão.
-É estranho que tenha enviado você. Afinal...
Interrompeu-se, deixando a frase no ar.
Olhava a bolsa de Corso.
-Trouxe o livro? Permita-me vê-lo?
Foram até a mesa e Corso pôs seu exemplar junto ao de Fargas. Ao fazê-lo ouviu sua respiração alterada. Voltava o êxtase ao rosto do bibliófilo:
-Olhe-os bem –falou em voz baixa, como se temesse desperta algo que estava dormindo naquelas páginas-. São perfeitos, belos e idênticos... Dois dos três únicos exemplares que escaparam do fogo, reunidos pela primeira vez desde sua dispersão há trezentos e cinquenta anos... –o tremor havia tomado suas mãos; esfregava os pulsos para acalmar o curso violenta do sangue que corria por eles-. Observe a errata da página 72. O “s” partido aqui, na quarta linha da 87... O mesmo papel, impressão idêntica... Não é maravilhoso?
-Com certeza –Corso limpou a garganta-. E gostaria de ficar um pouco. Estudá-los a sério.
Fargas o olhava, penetrante. Parecia duvidar.
-Como queira –disse ao fim-. Porém se seu exemplar é o Terral-Coy, a autenticidade fica fora de questão –dirigiu-lhe a Corso um olhar curiosos, tentando ler seus pensamentos-. Varo Borja tem que saber disso.
-Suponho que saiba –Corso esgrimia seu melhor sorrido neutro-. Porém eu cobro para comprová-lo –ainda manteve um pouco o sorrido; chegavam a um dos aspectos difíceis da questão-. -Por certo. Falando de cobrar, estou autorizado para fazer-lhe uma oferta.
A curiosidade do bibliófilo se converteu em suspicácia.
-Que tipo de oferta?
-Econômica. Substanciosa –Corso pôs a mão sobre o segundo exemplar-. Pode resolver seus problemas durante algum tempo.
-É Varo Borja quem paga?
-Poderia ser ele.
Fargas tocava a barba com os dedos.
-Já tem um livro. –concluiu-. Por acaso pretende reunir os três?
Ele poderia ser um pouco doido, mas não era burro. Corso opôs um gesto vago, sem comprometer-se demais. Talvez. Coisas de colecionadores. Porém, posto a vender, assim Fargas poderia conservar o Virgílio.
-Você não compreende –disse o bibliófilo, ainda que Corso compreendia muito bem. Ali não havia nada que fazer.
-Esquece –disse-. Era só uma ideia.
–Não vendo ao azar. Escolho meus livros. Pensei que tivesse explicado a você.
Engrossavam as veias no dorso das mãos crispadas. Começava a irritar-se, assim que Corso passou cinco minutos emitindo sinais de apaziguamento. A oferta era secundária, porém trâmite. O que pretendia de verdade, concluiu, era o estudo comparativo de ambos exemplares. Por fim, para seu alívio, Fargas fez um gesto afirmativo.
-Isso não me incomoda –disse. O receio permanecia um pouco. Era óbvio que Corso lhe caía bem, e que as coisas haviam sido diferentes de outro modo-. Ainda que não posso oferecê-lo muitas comodidades...
O guiou pelo corredor despido, até outra sala pequena que tinha um piano todo partido em um canto. Havia uma mesa com um velho candelabro de bronze coberto de pingos de cera, e um par de cadeiras desarrumadas.
-Pelo menos é um lugar tranquilo –disse Fargas-. E os vidros da janela estão intactos.
Estalou os dedos como se houvesse esquecido de alguma coisa, desaparecendo um momento para voltar com o resto da garrafa de conhaque em mãos.
-Varo Borja conseguiu-o enfim... –repetiu, e parecia sorrir interiormente, compadecido diante de alguma perspectiva que lhe causava, sem dúvida, profunda satisfação. Depois pôs a garrafa e copo no chão, longe dos exemplares de As Nove Portas, olhou ao redor como faria um atento anfitrião para comprovar se tudo estava em ordem, e deu uma última e irônica saudação antes de ir-se:
-Sinta-se em casa.
Corso esvaziou o resto do conhaque no copo, sacou suas notas e se pôs a trabalhar. Em um pedaço de papel havia marcado de tinta três colunas, cada uma delas encabeçada por um número e um nome:
EXEMPLAR UM (VARO BORJA) Toledo
EXEMPLAR DOIS (FARGAS) Sintra.
EXEMPLAR TRÊS (VON UNGERN) París.
Página após página, começou a anotar qualquer diferença entre o Um e o Dois, por mínima que fosse: uma mancha no papel, um tom de tinta mais forte em um exemplar do outro. Ao chegar a primeira gravura –NEM. PERVT.T QUI N.N LEG. CERT.RIT, o cavalheiro que aconselhava silêncio ao leitor- sacou uma lupa que amplia sete vezes da bolsa e estudou as duas xilografias gêmeas, linha a linha. Eram idênticas. Observou, contanto, que a pressão das gravuras sobre o papel, como a do resto da tipografia, era a mesma. Não se viam linha nem caracteres desgastados, tortos ou falhados, aparte dos comuns em ambos os exemplares. Isso significava que o Um e o Dois foram impressos consecutivamente, ou quase, sob a mesma prensa. Na gíria dos irmãos Ceniza, Corso estava diante de um par de gêmeos.
Seguiu anotando. Uma imperfeição na sexta linha da página 19 do Dois o fez parar um pouco, até comprovar que se tratava de um simples sinal de tinta. Passou mais páginas. Ambos exemplares tinham a mesma estrutura: duas folhas de guarda e 160 páginas cosidas em vinte cadernos de 8. As nove estampas do Dois, como as do Um, iam fora de texto, impressas à parte com o verso em branco no mesmo tipo de papel, e incorporadas ao exemplar durante a encadernação. Nos dois livros, sua posição eram idêntica:
                   I.              Entre pág. 16 e 17 

 II.            32-33
III.           48-49
IV.          64-65
V.           80-81
VI.          96-97
VII.         112-113
VIII.       128-129
IX.          144-145
Ou Varo Borja estava delirando, ou tinha-lhe dado um estranho trabalho. Não havia modo algum de que aquele fosse falso. Como muito poderia tratar-se de uma edição apócrifa; porém de época e pertencendo ambos exemplares à mesma. O Um e o Dois eram a viva estampa da honradez em papel impresso. 
Bebeu o resto do conhaque antes de aplicar a lupa à gravura II – CLAUS. PET. T.-: o eremita barbudo, a porta fechada, uma lanterna no chão e duas chaves nas mãos. Com as gravuras enfrentadas se sentiu logo infantil, igual quando brincava de achar os sete erros. Realmente –fez uma careta-, se tratava disso, A vida como jogo. E os livros como espelho da vida.
Então viu. Ocorreu como um golpe, do mesmo modo que nos situamos em uma perspectiva correta e algo sem aparente sentido se descobre logo organizado e preciso. Corso expeliu ar dos pulmões como se fosse rir, atôtito, porém só emitiu um som seco, parecido com um riso incrédulo, sem humor. Aquilo não podia ser. Não brincava com esse tipo de coisa, sacudiu a cabeça, confuso. O que estava diante de seus olhos não era um livro de passatempos adquirido em um quiosque de carrinho-de-ferro, senao um, dos volumes feitos três séculos  e meio atrás. Havia costado a vida de seu impressor, figuraram no índice de livros proibidos pela Inquisição, e os citavam as bibliografias sérias: Gravura II. Legenda latina. Ancião com duas chaves e uma luz em frente a uma porta fechada... Porém ninguém, até o momento, comparou juntos dois dos três exemplares conhecidos. Não era fácil reuni-los; nem tampouco necessário. Ancião com duas chaves. Isso bastava.
Corso levantou-se da mesa e foi até a janela. Permaneceu assim um tempo, olhando através do vidro embaçado pelo seu próprio hálito. Depois de tudo, Varo Borja tinha razão. Aristide Torchia deve ter rido muito sozinho, sobre a sua pira em Campi dei Fiori, antes que o fogo lhe roubar para sempre a vontade de o fazer. Como piada póstuma, era genial.




FIM

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