quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Postuma Necat - Capítulo VIII - O Clube Dumas

Postuma Necat

– Ninguém responde?                            
    Não.                                                  
– Muito pior. Então é porque está morto. 
                
Lucas Corso conhecia melhor que ninguém um dos grandes inconvenientes de seu ofício: as bibliografias as datam eruditos que não há visto os livros que citam, e só apoiam-se em relações de segunda mão, dando por válidas as características consignadas por outros. Desta forma, um erro ou uma resenha incompleta podem circular durante gerações sem que nada repare nele até que, por casualidade, alguém o coloca na luz. Esse era o caso de As Nove Portas. Apesar de sua obrigada menção nas bibliografias canônicas, as referências mais precisas incluíram sempre descrições someras das nove gravuras, sem menores detalhes. Sobre a segunda lâmina do livro, todos os textos conhecidos mencionavam um ancião com aspecto de sábio ou ermita, parado diante de uma parte com duas chaves na mão; porém ninguém se ocupou nunca de concretar em que não segurava as chaves. Agora Corso tinha uma resposta: na esquerda, a gravura do Um; na direita, no número Dois.
Ficava por saber o que ocorria com o número Três; porém isso era impossível averiguar, ainda. Corso esteve na Quinta da Solidão até o anoitecer. Trabalhou muito à luz do candelabro, tomando notas sem parar, revisando uma e outra vez ambos exemplares. Estudou as lâminas uma por uma até confirmar sua hipótese. E apareceram novas provas. Por fim observou seu espólio em forma de notas sobre o pedaço de papel, quadros e diagramas com estranhas relações entre uns e outros. Cinco lâminas dos exemplares Um e Dois não eram idênticas. Ainda mais da mão com o que ancião sujeitava as chaves na numerada II, o labirinto da III não tinha ou tinha saída, segundo se tratava de um ou outro exemplar. Na lâmina V, a morte mostrava um relógio com a areia abaixo, no Um, ou com a areia na parte superior, no Dois. Quanto ao tabuleiro de xadrez da VII, suas casinhas eram brancas no exemplar de Varo Borja e pretas no de Fargas. E na numerada VIII, o carrasco a ponto de decapitar uma jovem ficava convertido, por efeito de uma aura em torna da cabeça, um arcanjo vingador.


E ainda encontrou mais coisas, porque o minucioso estudo com a lupa terminava dando um fruto inesperado. As marcas do gravador dissimuladas nas xilografias continham outra pista sutil: em ambos exemplares, A. T., Aristide Torchia, figurava como escultor na lâmina do ancião; porém como inventor, só no livro número Dois. A assinatura no Um era L. F., sobre cuja existência Corso havia sido alertado pelos irmãos Ceniza. O mesmo acontecia em mais quatro lâminas. Isso podia significar que todas as xilografias foram talhadas em madeira pelo próprio impressor, porém que os desenhos originais de onde copiou algumas das gravuras pertenciam a outra pessoa. Não se tratava, em consequência, de falsificação de época nem de reedição apócrifa. Foi o mesmo impressor Torchia, com privilégio e licença dos superiores, quem alterou sua própria obra com abrigo de um plano estabelecido: assinando os modificados por ele para respeitar a autoria L. F. dos outros. Só ficava um exemplar, confessou a seus algozes. Porém em realidade deixava três, e uma chave que talvez os convertera em um. O resto do segredo foi levado à fogueira.
Recorreu a um velho sistema de colação: as tabelas comparativas usadas por Umberto Eco no estudo sobre a Hanau. Ordenadas sobre o papel as lâminas que continham as diferenças, resultava o seguinte esquema:
E quanto as marcas do gravador, as variações nas assinaturas A. T. (o impressor Torchia) e L. F (desconhecido?, Lucifer?) correspondentes ao escultor e ao inventor se estabeleciam assim:


Cabala estranha. Mas Corso tinha por fim algo concreto: a existência de certa chave encerrando um sentido. Se levantou lentamente, como se temesse que todas aquelas correspondências fossem esfumar-se diante de seus olhos, porém também com a calma do caçador seguro de que ao final de um rastro, por mais confuso que seja, sempre há uma peça a recolher.
Mão. Saída. Areia. Tabuleiro. Aura.
Lançou um olhar pela janela. Do outro lado do vidro sujo, recortando o galho de uma árvore, um resto de claridade avermelhada resistia a desaparecer na noite.
Exemplares Um e Dois. Diferenças nos números 2, 4, 5, 7 e 8.
Tinha que ir a Paris. Lá estava o número Três, e talvez a resposta ao enigma. Porém outro assunto o preocupava; algo a resolver com urgência. Varo Borja havia sido taxante: descartada a possibilidade de conseguir o número Dois por métodos convencionais, era tempo de ir meditando um plano heterodoxo de aquisição. Com o menor dano e risco possível para Fargas ou o próprio Corso, naturalmente. Algo suave e discreto. Tirou sua agenda do bolso da jaqueta, em busca do número de telefone apropriado. Era um trabalho perfeito para Amilcar Pinto.
Uma das velas, consumida, se apagou em um curto espiral de fumaça. Em algum lugar da casa soava um violino, e Corso rio outra vez entre dentes, breve e seco, enquanto a chama do candelabro fazia dançar as luzes e sombras na sua face ao inclinar-se para acender um cigarro. Depois se ergueu, escutando. A música soava igual a um lamento que se deslizava pelos cantos vazios, escuros, sobre os restos de móveis deteriorados e polvorentos, abaixo do teto pintado sobre teia de aranha e sombras que só abrigava pegadas nas paredes, ecos de passos, vozes mortas tempos atrás. E fora, sobre o portão oxidado, os dois rostos de mulher, abertos na noite os olhos de um, cobrindo o outro com a máscara de hera, escutavam imóveis, com a quietude do tempo parado no vazio, a música que Victor Fargas arrancava ao violino para conjurar os aspectos de seus livros perdidos.
Retornou andando à cidade, as mãos nos bolsos do casaco e a gola erguida até as orelhas; vinte minutos pelo lado esquerdo da estrada deserta. Não havia saido a lua, e Corso entrava em grandes manchas de sombra ao passar abaixo de árvores que cobriam o caminho com uma abóbada negra. O silêncio era quase absoluto, quebrado apenas pelo barulho dos seus sapatos sobre o cascalho da calha, ou o gotejar de água na calha ladeira abaixo, entre a esteva e a hera, invisíveis na escuridão.
Um carro se aproximou por trás, sobrepondo-o, e Corso viu sua própria silhueta, de contornos agigantados e fantasmagórico, deslizar-se ondulante sobre os troncos das árvores perto e a espessura do bosque. Só para ser enrolado outra vez entre as sombras e expulsou a respiração e sentiu que relaxaram seus músculos em tensão. Não pertencia à classe de indivíduos que enxergam fantasmas pelas esquinas. Mas via as coisas muito bem, inclusive as extraordinárias, com fatalismo meridional tipo um velho soldado, sem dúvida herança genética do tataravô Corso: por muito que um cavalo ficava na direção contrária, o inevitável guarda sempre na porta da Samarcanda mais próxima, limpando-se as unhas com uma adaga veneziana, ou com uma baioneta escocesa. Porém ainda assim, desde o incidente na rua de Toledo, o caçador de livros experimentava uma justificável apreensão cada vez que ouvia um motor aproximando-se às suas costas.
Talvez por isso, quando os faróis de outro automóvel pararam a seu lado, Corso ficou alerta enquanto trocava a bolsa de lona do ombro direito ao esquerdo e procurava, dentro do bolso da jaqueta, seu molho de chaves, arma de fortuna capaz de atacar o olho de qualquer que se aproximasse demais. Sem mais, o quadro parecia suave: uma silhueta metálica grande e escura, tipo berlina, e dentro, apenas iluminado pela luz do painel, um perfil masculino anunciando uma voz amável, educada.
- Boa noite... -o sotaque era impreciso, nem português nem espanhol- tem fogo?
Poderia muito bem só um mal pretexto; isso não havia forma de averiguar. Tampouco era coisa de sair correndo ou empunhar a mais pontiaguda de suas chaves porque simplesmente o pediram um cigarro; assim Corso soltou o chaveiro, pegou uma caixa de fósforos e acendeu um, protegendo a chama no eco da mão.
- Obrigado.
Ali estava a cicatriz, naturalmente. Era antígua, grande e vertical, da têmpora até o meio da bochecha esquerda. Pode observar bem quando o outro se inclinou para acender o puro Montecristo, e manteve a luz em alto tempo suficiente para distinguir o bigode negro, espesso, e os olhos escuros que o olhavam com firmeza na penumbra. Logo, o fósforo se consumiu entre os dedos de Corso e pareceu que uma mascara negra que quebrava em pedaços do desconhecido. De novo foi uma sombra, marcada apenas por um resplendor tênue do painel de instrumentos.
- Quem diabos é você?
Não foi um comentário sereno, nem brilhante. De toda forma, era muito tarde; a pergunta se perdeu no som do motor acelerando. O duplo ponto vermelho das luzes do automóvel se afastava rua abaixo, deixando um rastro fugaz sobre o asfalto. Todavia brilhou um momento com mais intensidade ao freiar na primeira curva, e depois desapareceu como se nunca estivesse estado ali.
O caçador de livros seguia imóvel na sarjeta, tentando situar aquilo em seu cenário: Madri, porta da viúva Taillefer. Toledo, visita a Varo Borja. E Sintra, depois de uma tarde na casa de Victor Fargas. Também periódicos de Dumas, um editor enforcado em seu escritório, um impressor queimado com seu estranho manual... E entre uns e outros, pegado nas solas de Corso como que se tratasse de sua sombra, Rochefort: uma ficção espadachim do século XVII reencarnado em chofer de uniforme, condutor de automóveis de luxo. Responsável por um intento de atropelamento e um par de roubos. E o fumante de cigarros Montecristo. Fumante sem isqueiro.
Blasfemou suavemente em voz baixa. Havia dado um livro raro, em bom estado, por quebrar-lhe a cara do responsável por aquele script absurdo.
Apenas chegou ao hotel e fez várias ligações. A primeira foi ao número de Lisboa que tinha na agenda; e teve sorte, pois Amílcar Pinto estava em casa: averiguou após a conversa com sua mal humorada mulher, com som de fundo de uma televisão no volume máximo, gritos de crianças e violenta discussão entre vozes adultas que chegavam através do auricular do baquelite preto. Por fim teve Pinto a disposição. Ficaram de ver-se uma hora e meia mais tarde, o tempo que o português demoraria em recorrer os cinquenta quilômetros que os separava de Sintra. Solucionado isto, Corso olhou o relógio enquanto marcava linha internacional para falar com Varo Borja; porém o livreiro não estava em sua casa de Toledo. O deixou uma mensagem na secretária automática e discou um número de Madri, o de Flavio La Ponte. Tampouco obteve resposta, guardou a bolsa sobre o armário e foi tomar algo.
O primeiro que viu ao empurrar a porta da pequena sala do hotel foi a menina. Não havia erro possível: o cabelo curtíssimo, o ar de menino, a pele bronzeada como se estivessem em pleno mês de agosto. Lia sentada em uma poltrona junto do cone da luz de uma lâmpada, com as pernas estiradas e cruzadas sobre o acento da frente, os pés descalços, jeans e camiseta branca de algodão, o jersey de lã cinza sobre os ombros. E Corso parou imóvel, com a mão na maçaneta e uma absurda sensação martelando no pensando. Coincidência ou de propósito, aquilo era excessivo.
Por fim, todavia incrédulo, aproximou-se da garota. Quase estava a seu lado quando levantou a vista do livros fixando nele os olhos verdes, transparentes e profundidade que tão bem recordava de seu encontro no trem. Se deteve sem saber o que iria dizer; com a estranha sensação de que podia cair naqueles olhos.
-Não me contou que viria à Sintra -disse
-Você também não.
Acompanhava sua resposta com um sorriso tranquilo, sem incômodo nem surpresa. Parecia sinceramente contente de encontrar-se com ele.
-O que faz aqui? -perguntou Corso.
Ela retirou os pés do acento, oferecendo-o com um gesto; porém o caçador de livros permaneceu de pé.
-Viajo -disse a menina e mostrou seu livro; não era o mesmo do trem: Melmoth o errante, de Charles Maturin- Leio. E tenho encontros inesperados.
-Inesperados -repetiu Corso como um eco.
O fossem inesperados ou não, eram muitos encontros para uma noite apenas. E se viu ligando entre sua presença no hotel e a aparição de Rocherfort da rua. Tinha que haver um ponto de vista desde que as coisas encaixassem umas com as outras, ainda que se encontrava muito longe disso. Nem sequer sabia aonde procurar.
-Não se senta?
Sentou-se, vagamente inquieto. A jovem havia fechado o livro e o observava com curiosidade.
-Não parece um turista -disse ela.
-Não sou.
-Trabalhas?
-Sim.
-Qualquer trabalho em Sintra tem que ser interessante.
Só faltava isso, pensou Corso ajuntando seus óculos com o indicador. Sofrer um interrogatório a essas alturas, ainda que o inquisidor fosse uma bela e jovem garota. Talvez esse era o problema: muito jovem para representar uma ameaça. Ou talvez aí é que mora o perigo. Ele pegou o livro, que a menina havia posto sobre a mesa e o folheou um pouco. Era uma edição inglesa, moderna e alguns parágrafos estavam sublinhas a lápis. Parou em um deles.
Seus olhos seguiam fixos na luz declinante e na crescente escuridão. Essa escuridão preternatural que parece dizer a mais luminosa e sublime obra de Deus: "Deixe-me o local; para já de brilhar".
-Gosta de ler novela gótica?
-Gosto de ler -havia inclinado um pouco a cabeça e a luz desenhava em reflexão seu pescoço nú-. Tocar os livros. Sempre viajo com vários na mochila.
-Viaja muito?
-Muito. Faz séculos.
Torceu a boca ao ouvir a resposta. Ela ficou muito seria, franzindo a testa com um ar de menina que se refere a assuntos graves.
-Pensei que era estudante.
-As vezes.
Corso deixou o Melmoth sobre a mesa.
-Você é uma jovem misteriosa. Tem quantos anos? Dezoito, dezenove?... As vezes muda de expressão como se tivesse muito mais idade.
-Talvez tenha. Cada um tem os gestos do que viveu o do que leu. Observa-se em você.
-Oque acontece comigo?
-Nunca sorriu? Parece um soldado velho.
Moveu-se um pouco no acento, incômodo.
-Não sei como sorri um soldado velho.
-Mas eu sei como -os olhos da garota voltaram à opacos;vagavam por dentro, em sua própria memória-. Uma vez conheci dez mil homens que buscavam o mar.
Corsco ergueu a sobrancelha com exagerado interesse.
-Não me diga... Isso pertence ao que leu ou ao que viveu?
-Adivinhe -parou olhando fixo antes de adicionar-: Você parece um cara esperto, senhor Corso.
Agora estava em pé, recorria ao livro da mesa e as sapatilhas brancos do chão. Seus olhos pareceram sobrar vida e o caçador de livros viu agitar-se neles reflexos familiares. Havia algo de conhecido, como se havia visto aquele olhar.
-Pode ser que nos vejamos -disse ela antes de ir-. Por aí.
Não restou a menor dúvida de que iriam mesmo. E não estava muito certo de queria ou não. De qualquer forma, sua reflexão durou escassos segundos. Ao sair, a menina cruzou na porta com Amílcar Pinto.
O recém chegado era baixo e gordo. Tinha pele escura, reluzente com se recém envernizada, além de um bigode forte e espesso recortado a tesoura.Havia sido policial honrado, inclusive um bom policial, de não se ver na necessidade de alimentar cinco filhos, uma mulher e um pai aposentado que fumava tabaco escondido. A mulher, uma morena que vinte anos atrás foi muito bonito, a trouxe de Moçambique com a independência, quando Maputo se chamava Lourenço Marques e ele era um sargento de paraquedistas condecorado, muito valente. Corso a havia visto no curso das combinações que de vez em quando fazia com seu marido: olhos cercados de fadiga, peitos grandes e flácidos, sapatilhas velhas e o cabelo enrolado em um pano vermelho no lobby da casa que cheirava a crianças fedidas e verduras cozidas.
O policial entrou diretamente na sala, olhou de soslaio a menina ao cruzar com ela e veio a cair-se numa poltrona em frente ao caçador de livros. Bufava como se tivesse viajado a pé desde Lisboa.
-Quem é ela?
-Ninguém que importe -respondeu Corso-. Uma jovenzinha espanhola. Turista.
Assentiu Pinto, tranquilizado, secando as palmas úmidas no tecido da calça. Era um gesto que repetia com frequência. Suava muito e o pescoço de suas camisas sempre tinham uma mancha escura ali onde tinha contato com a pele.
-Tenho um problema. -disse Corso.
O sorrido do português se fez mais grande. Não há problema insolúvel, insinuava aquele gesto. Não enquanto eu e você sigamos a nos dar bem
-Estou certo -respondeu- de que podemos solucioná-lo juntos.
Agora sorriu a Corso. Havia quatro anos que conhecia Amílcar Pinto, a causa de um feio assunto de livros roubados que apareceram nos estábulos da Feira da Ladra. Corso esteve em Lisboa para identificá-los, Pinto realizou um par de detenções e no caminho de volta ao proprietário alguns exemplares valiosos desapareceram para sempre jamais. A fim de celebrar o início daquela frutífera amizade, se haviam embebedado juntos nos bares do Bairro Alto enquanto o ex sargento paraquedista lembrava nostalgias coloniais, contando a Corso o modo que estiveram a ponto de explodir os ovos na batalha de Gorongosa. Terminaram cantando Grándola vila morena a grito no miradouro de Santa Luzia, com o bairro de Alfama iluminado pela lua, a seus pés e o bloco mais além, longo e reluzente como uma lençol de prata sobre a que se deslizavam, muito devagar, as silhuetas escuros dos baros rumo à torre de Belém e do Atlântico.

O garçom trouxe a Pinto o café que havia pedido. Corso esperou que se distanciasse para continuar: -Há um livro.
O policial se inclinava sobre a mesa baixa, colocando açúcar no café.
-Sempre há um livro –disse, reservado. –Este é especial.
-Qual não é?
Corso sorriu novamente. Um sorriso metálico, afiado. –O dono não quer vender.
-Pena –Pinto levou o copo aos lábios, saboreando com prazer o café-. O comércio é bom. Os objetos vão e vem, se movem. Geram riqueza, fazem os intermediários ganhar dinheiro... –deiou o copo para secar as mãos na calça-. Os produtos devem circular. São as leis do mercado; as leis da vida. Não vender tinha que ser proibido: é quase um crime.
-Estou de acordo –respondeu Corso-. Deverias fazer algo a respeito.
Pinto recostou-se na poltrona e olhou o seu interlocutor, seguro e repousado, esperando. Uma vez, durante uma emboscada no mato moçambiquenho, havia carregado a ombros com um tenente moribundo, chovendo a noite toda com ele durante dez quilômetros de selva. Ao amanhecer sentiu o tenente morrer, porém não quis deixa-lo no chão e continuou com o cadáver até alcançar a base. O tenente era muito jovem, e Pinto pensou que a mãe dele gostaria muito que fosse enterrado em Portugal. Deram-no uma medalha por isso. Agora os filhos de Pinto brincavam pela casa com suas medalhas oxidadas
-Talvez conhece o indivíduo: Victor Fargas.
O policial afirmou com um gesto.
-A família Fargas é muito ilustre –respondeu-. Muito antiga. Em outra época tiveram influência, mas não tem mais.
Corso o entregou um envelope fechado.
-Aqui tem todas os dados que precisas: proprietário, livro e lugar.
-Conheço a quinta –Pinto passava a ponta da língua pelo lábio superior, umedecendo o bigode-. Muito imprudente, guardar livros valiosos ali. Qualquer  sem escrúpulos pode entrar –olhou a Corso contrito, como se de verdade se sentira pesaroso pela imprevisão de Victor Fargas-. Eu posso pensar num, por exemplo: um ladrão de Chiado que me deve favores.
Corso sacudiu uma poeira invisível da roupa. Não era assunto seu. Não, ao menos, na fase operativa.
-Quero estar longe quando acontecer.
-Descuida. Terás o livro, e ao senhor Fargas vai incomodar o essencial. Um vidro quebrado, como muito: trabalho limpo. E quanto aos honorários...
Corso apontou ao envelope, que o outro tinha em mãos, sem abrir.
-É um adiantamento pela quarta parte do total. O resto, na entrega.
-Nenhum problema. Quando vai?
-Amanhã no primeiro horário. Estarei em contato com você desde Paris –Pinto começava a se levantar, mas Corso o deteve com um gesto-. Outra coisa. Quero identificar um fulano alto, um metro e oitenta mais ou menos, com um bigode e uma cicatriz no rosto. Cabelo preto, olhos escuros. Magro. Não é espanhol nem português. E esta noite ronda por aqui.
-Perigoso?
-Não sei. Me segue desde Madrí.
O policial tomava notas no verso do envelope.
-Alguma relação com o nosso negócio?
-Suponho. Porém não há mais dados.
-Farei o que puder. Tenho amigos aqui, na comissária de Sintra. E farei uma busca em nossos arquivos da central, em Lisboa.
Se havia posto de pé, guardando o envelope no bolso interior da jaqueta. Corso teve a fugaz visão de uma coronha de revólver  no coldre, abaixo da axila esquerda.
-Não fica pra tomar algo?
Pinto suspirou, negando com a cabeça.
-Gostaria; mas tenho três dos meus moreninhos com sarampo. Eles contagiam uns aos outros, os carinhas.
Disse sorrindo com um ar cansado. No mundo de Corso, todos os heróis estavam cansados.
Saíram juntos na porta do hotel, onde Pinto tinha embarcado num velho Citroen 2 CV. Ao agitar as mãos, Corso voltou ao tema de Victor Fargas.
-Insisto em que os incômodos sejam mínimos... Se trata de um simples roubo.
O policial colocou o motor em marcha e acendeu as luzes, dirigindo-lhe um olhar de reprovação através da janela aberta. Parecia ofendido.
-Por favor. Esses comentários sobram. Entre profissionais.
Depois de Pinto ir-se, o caçador de livros subiu à habitação para organizar suas notas, e trabalhou até muito tarde com a cama cheia de papéis e As Nove Portas aberto sobre o travesseiro. Ia ao banheiro quando olhou o telefone. Era varo Borja, interessando-se pelo assunto de Fargas. Tratou com ele em termos gerais, incluindo as diferenças que havia encontrado entre cinco das nove folhas:
-Por certo –assentiu-. Nosso amigo não vende.
Houve um silêncio do outro lado da linha telefônica; o livreiro parecia refletir, ainda que era difícil saber se sobre o assunto das folhas ou a negativa de Fargas. Quando falou de novo, seu tom era extremamente cauteloso:
-Entra no provável –disse, e tampouco esta vez Corso pode saber ao que se referia-... Há algum médio de burlar a dificuldade?
-Pode ter.
O telefone esteve novamente em silêcio. Cinco segundos, contou Corso no relógio.
-Deixo em suas mãos.
Depois já não se contaram grande coisa. Corso omitiu a conversação com Pinto, e o outro não mostrou curiosidade pela forma em que pensava prosseguir o caçador de livros no eufemismo de burlar a dificuldade. Varo Borja se limitou a inquirir se tinha falta de dinheiro, e a resposta foi não. Ficaram de falar em Paris.
Corso marcou, depois, o número de La Ponte e tampouco agora obteve resposta. As folhas azuis do manuscrito Dumas seguiram em sua pasta quando recolheu as notas e o volume depele negra om o pentagrama na capa.  Devolveu tudo à bolsa de couro e a colocou debaixo da cama, amarrando uma das alças. Assim, por mais que dormisse profundamente, ninguém que entrasse no quarto poderia roubar sem que ele acordasse. Bagagem desconfortável, disse enquanto ia até ao banheiro para abrir a torneira de água quente. E por alguma razão que desconhecia, perigosa.
Depois de escovar os dentes se despiu para meter-se na ducha. Quase embaçado pelo vapor, o espelho refletia sua imagem, magro e duro como um lobo descarnado, quando deixou cair a roupa aos pés. Outra vez a pontada de angústia veio de muito longe, do passado, para rondar sua consciência em uma forma remota, dolorosa; igual a uma corda que vibrasse dentro da carne e da memória. Nikon. Continuava recordando-a cada vez que tirava o cinto, que ela sempre se obstinava em soltar com suas próprias mãos como se tratasse de um estranho ritual. Fechou os olhos e a viu de novo diante dele, sentada na borda da cama, deslizando-se pelas pernas a calça e deslizando devagar, muito devagar, saboreando o momento com um sorriso cúmplice e terno. Relaxa, Lucas Corso. Uma vez o havia fotografado de surpresa, dormindo com uma ruga no cenho e a bochecha escurecida pela barba, que enfraquecia seu rosto acentuando o sorriso amargo e tenso nos cantos de sua boca entreaberta. Parecia um lobo exausto, receoso e atormentado na deserta planície de neve do travesseiro branco, e ele não gostou desta foto que Nikon utilizava como laboratório. A rasgou em pequenos pedaços e ela nunca disse nada.
A agua quente abraçou a pele de Corso quando se pôs debaixo da ducha, deixando-a correr por seu rosto, queimando as pálpebras enquanto aguentava a dor com as mandíbulas tensas e os músculos crispados, reprimindo a ânsia de gritar, entre o calor úmido que o asfixiava, o uivo de sua solidão. Durante quatro anos, um mês e doze dias, cada vez depois de fazer amor, Nikon se metia atrás dele na ducha para ensaboar sua costa lenta, interminavelmente. E quando terminava abraçava seu torso, como uma criança perdida, debaixo da chuva. Um dia irei sem haver te conhecido nunca. Recordarás, então, meus olhos grandes, escuros. Minhas censuras silenciosas. Meus gemidos de angústia ao dormir. Meus pesadelos que és incapaz de conjurar. Recordarás tudo isto quando me tiver ido.
Apoiou a cabeça nos azulejos brancos, goteando de vapor naquele úmido deserto que tanto se lembrava como um inferno. Ninguém o havia ensaboado as costas antes e nem depois de Nikon. Nunca. Ninguém. Jamais.
Saiu da ducha e jogou-se na cama com o Memorial de Santa Helena, porém apenas chegou a ler um par de linhas:

Voltando à guerra, o Imperador prosseguiu: “Os espanhóis em massa se conduziram como um homem de honra”...

Fez uma careta à linha do elogia napoleônico, velho de dois séculos. Recordava umas palavras que ouviu quando menino; talvez a um de seus avôs, ou a seu pai: “Só há uma coisa que, nós espanhóis, fazemos como ninguém: sair nos quadros de Goya”... Homens de honra, havia dito Bonaparte. Corso pensou em Varo Borja e seu talão de cheques, em Flavio La Ponte e as bibliotecas de viúva espalhadas por quatro quartos. No fantasma de Nikon vagando na solidão de um deserto branco. Nele mesmo, lebre de caça no melhor sentido. Eram outros tempos.
Ainda sorria, desesperado e amargo, quando dormiu.


Ao despertar, o primeiro que viu foi a luz cinza do amanhecer na janela. Muito cedo. Se movia, confuso, tateando em busca do relógio sobre a cabeceira, quando compreendeu que o telefone tocava. O aparelho caiu duas vezes no chão antes de o encaixa entre sua orelha e o travesseiro.
-Diga.
-Sou sua amiga de ontem. Lembras?... Irene Adler. Estou na entrada no hotel, e temos que falar. Agora.
-Que diabos... ?
Porém ela já havia desligado. Maldizendo, Corso buscou seus óculos, arrumou as cobertas e colocou a calça, sonolento e desconcertado. Logo, com súbita sensação de pânico, olhou embaixo da cama; a bolsa continuava ali, intacta. Conseguiu observar com esforço os objetos ao seu redor. Tudo estava em ordem dentro do quarto; era lá fora que aconteciam coisas. Teve tempo de ir ao banheiro e jogar água no rosto antes de o chamarem na porta.
-Sabe que maldita hora é?
A jovem estava no limiar, com seu casaco de lã azul e a mochila no ombro; os olhos todavia mais verdes do que Corso se lembrava.
-São seis e meia da manhã –anunciou ela mesma com calma-. E tem que se vestir às pressas.
-Está louca?
-Não –havia entrado no quarto sem que ele a convidasse, e olhava ao seu redor com ar crítico-. Temos pouquíssimo tempo.
-Temos?
-Você e eu. As coisas se complicaram muito.
Corso bufou, irritado.
-Não são horas para provocar as pessoas.
-Não seja estúpido –enrugava o nariz com expressão grave. Apesar de seu aspecto de menino e de sua juventude parecer distinta, mais madura e aplumada-. Falo sério.
Havia posto sua mochila na cama desfeito. Corso a pegou, a devolvendo enquanto acenava para a porta.
-Vai para o diabo.
Ela não se moveu, limitando-se a olhá-lo com atenção.
-Escute –os olhos claros estavam muito perto; pareciam gelo líquido, tão luminosos na pele bronzeada de seu rosto-. Sabe quem é Victor Fargas?
Por cima do ombro da jovem, o espelho sobre a cômoda, Corso viu sua própria face: boquiaberto como um perfeito imbecil.
-Claro que sei –articulou enfim.
Havia demorado vários segundos para reagir, e ainda piscou, confuso. Ela aguardava , sem mostrar-se satisfeita pelo efeito conseguido. Estava claro que seus pensamentos discorriam por outra parte.
-Morreu –disse.
Falou em tom neutro, com a mesma tranquilidade que teria utilizado para dizer se já tomou café ou se foi ao dentista. Corso inspirou tonto, tentando digerir aquilo.
-Impossível. Estive com ele a noite. E estava bem.
-Agora já não está bem. Não está de nenhuma maneira.
-Como sabe?
-Eu sei.
Corso moveu a cabeça, suspeitando, antes de procurar um cigarro. Na metade do caminho estava o vidro de Bols, e tomou; o gim a caminho do estômago vazio eriçou a pele. Depois fez um tempo obrigando-se a não olhar para a jovem até o primeiro sopro de fumo. Não estava em absoluto satisfeito do papel que havia o toado essa manhã. E necessitava assimilá-lo todo, lentamente.
-O café de Madri, o trem, a noite e esta manhã, aqui em Sintra... –contava com o cigarro na boa, olhos entornados pelo fumo, o indicador sobre os dedos da mão esquerda-. Quatro coincidências são muitas, não acha?
Ela sacudiu a cabeça, impaciente.
-Pensava eu que eras mais inteligente. Quem fala de coincidências?
-Porque me segues?
-Gosto de você.
Corso não tinha vontade de rir; se limitou a torcer um pouco a boca.
-Isso é ridículo.
O olhou largamente, refletindo.
-Imagino que sim –foi a conclusão-. Tampouco parece arrebatador, sempre com esse velho casaco. E os óculos.
-E?
-Busque outra resposta: qualquer uma pode servir. Porém agora vista-se de uma vez. Temos que ir à casa de Victor Fargas.
-Temos?
-Você e eu. Antes que a polícia chegue.


As folhas mortas quebravam debaixo de seus pés quando empurraram o portão de ferro, cruzando o caminho rodeado por estátuas quebradas e pedestais vazios. Sobre a escada de pedra, o relógio de sol, desprovido de sombra abaixo da luz chumbada da manhã, seguia sem marcar hora alguma. Postuma necat. A última mata, leu Corso de novo. A menina havia seguido a direção de seu olhar.
-Rigorosamente certo –disse com frieza, e empurrou a porta. Estava fechada.
-Por trás –sugeriu Corso.
Rodearam a casa, passando perto da fonte de azulejos onde o anjo de pedra, olhos vazios e mãos mutiladas, seguia vertendo um pingo d’água na lagoa. A jovem, Irene Adler ou como se chamava, avançava ante Corso com sua pequena mochila nas costas de seu casaco de lã azul. Se movia surpreendente leveza, tranquila e flexível ao extremo de suas largas pernas com calça jeans, a cabeça teimosa inclinada adiante com um gesto decidido de quem sabe muito bem aonde vai. Esse não era o estado de espírito de Corso. Havia recobrado o controle de sua própria incerteza e se deixara guiar pela menina, adiando as perguntas. Tomou uma rápida ducha, com tudo que o interessava conservar na sua bolsa de couro presa ao ombro, só As Nove Portas, o exemplar número Dois de Victor Fargas, ocupava agora seu pensamento.
Entraram sem dificuldade pela porta que dava no jardim com o salão. No teto, adaga acima, Abraham seguia velando sobre os livros alienados no chão. A casa parecia deserta.
-Onde está Fargas? –perguntou Corso.
A garota encolheu os ombros.
-Não tenho a menor ideia.
-Disse que estava morto.
-E está –pegou o violino da cômoda para estuda-lo com curiosidade depois de dar uma olhada ao redor, às paredes vazias e os livros-. O que não sei é onde.
-Me provocas.
Ela havia encaixado o instrumento debaixo do queixo, e fez vibrar as cordas antes de devolvê-lo à cômoda, insatisfeita pelo som. Então olhou Corso.
-Homem de pouca fé.
Sorriu um pouco outra vez, com ar ausente, o caçador de livros teve a certeza de que havia uma desproporcionada madureza nessa leveza a um tempo profundo e frívolo. Aquela jovenzinha funcionava por códigos singulares; por estímulos e pensamentos mais complexos do que permitiam supor sua idade e aparência.
Logo, Corso apagou tudo da cabeça: a menina, a estranha aventura, inclusive o cadáver de Victor Fargas. Sobre a tapeçaria desgastada da batalha de Arbelas, entre os livros de ocultismo e artes diabólicas, havia um eco. A Nove Portas já não estava ali.
-Merda  –disse.
Repetiu entre dentes enquanto se inclinava sobre a fila de livros até ficar de joelhos diante deles. Seu olhar de expert, acostumado a distinguir o volume buscado num primeiro olhar, vagou de um lado para o outro em completa orfandade. Marroquino negro, cinco nervos, sem título exterior, um pentagrama na capa. Umbrarum regni, etc. Sem possível erro. Um terço do mistério, exatamente os 33,33 por cento –periódia pura- havia voado.
- Maldita seja meu selo.
Muito rápido para Pinto, refletiu em seguida; o português não havia tido tempo de organizar aquilo. A menina o observava como se esperasse algum tipo de reação que interessaria observar. Corso se incorporou.
-Quem éres?
Era a segunda vez em menos de doze horas que fazia a mesma pergunta, porém a duas pessoas diferentes. Tudo estava se complicando com muita rapidez.
Por sua parte, a jovem ouviu sua pergunta e seu olhar sem mudar-se. Ao cabo de um instante desviou os olhos à um lado de Corso, ao vazio. Ou talvez aos livros alienados no chão.
-Isso não importa –respondeu enfim-. Pergunte-se melhor onde foi parar o livro.
-Que livro?
Olhou-o novamente sem responder, enquanto ele se sentia incrivelmente estúpido.
-Sabe muitas coisas –disse à menina-. Inclusive mais que eu.
A viu encolher outra vez os ombros. Observava o relógio no punho de Corso como se pudesse ver a hora nele.
-Não resta muito tempo.
-Não dou a mínima para o tempo que resta.
-Vai você. Mas tem um vôo Lisboa-Paris dentro de cinco horas, desde o aeroporto de Portela. Temos o tempo certo para chegar ali.
Deus. Corso estremeceu debaixo do casaco, horrorizado. Parecia uma secretária eficaz, agenda em mãos, enumerando os compromissos na viagem de seu chefe. Abriu a boca para protestar. Jovenzinha e tudo, com aqueles olhos inquietantes. A maldita bruxa.
-Porque eu iria agora?
-Porque a polícia pode chegar.
-Não tenho nada que esconder.
A jovem sorriu de modo indefinível; parecia que acabara de escutar uma piada engraçada mas muito velha. Logo ajeitou a mochila nas costas e fez um gesto de despedida à Corso, levantando uma mão com a palma aberta para dizer-lhe adeus.
-Te levo tabaco na cadeia. Ainda que em Portugal não vendam sua marca.
Se foi ao jardim sem dar sequer um olhar para a casa. Corso estava a ponto de ir atrás dela, para detê-la. Então viu o que havia na chaminé.
Passado o primeiro momento de espanto se aproximou lentamente; talvez pretendia dar uma oportunidade aos acontecimentos para que discorressem por causas racionais. Porém quando chegou para comprovar, apoiado na prateleira, que alguns desses acontecimentos eram irreversíveis. Por exemplo: no breve lapso que ia da noite anterior para a manhã, período ínfimo em comparação com seus conteúdos centenários, as bibliografias sobre livros raros acabavam de ficar antiquadas. De As Nove Portas já não havia três exemplares conhecidos, senão dois. O terceiro, ou melhor, o que restava dele, ainda se via na fumaça entre as cinzas.


Se ajoelhou, procurando não tocar em nada. As capas, sem dúvida pela pele da encadernação, estavam menos consumidas que as páginas. Dois dos cinco nervos do volume continuavam intactos, e o pentagrama só estava queimado pela metade. As páginas haviam queimado por completo; apenas ficavam algumas margens chamuscadas, com fragmentos de escrita. Corso aproximou a mão dos restos, todavia quentes.
Tirou um cigarro e o colocou na boca, sem acendê-lo. Conhecia a disposição da lenha na chaminé por havê-la visto na tarde anterior. Pela situação das cinzas –as lenhas queimadas estavam abaixo das cinzas do livro, sem que ninguém houvesse removido as cinzas- deduziu que o fogo ardeu até apagar-se com o livro em cima. Via que ali tinha lenha suficiente para quatro ou cinco horas; e o calor conservado delatava um fogo extinguido desde mais ou menos o mesmo tempo. Isso somava de oito à dez horas: alguém teve que acendê-lo entre as dez e a meia-noite, antes de colocar o livro em cima. E quem fez aquilo não se importou depois em remover as brasas.
Corso envolveu com uns jornais velhos os restos que pôde resgatar da chaminé. Os fragmentos de folhas estavam rígidos e quebradiços, assim a operação levou bastante tempo. Ao fazê-lo observou que páginas e capas arderam separadamente; quem as pôs na chaminé havia arrancado umas para facilitar a combustão.
Concluído o resgato dos restos, se entreteve em dar uma olhada pelo salão. O Virgilio e o Agricola seguiram onde Fargas os havia colocado: em seu local o De re metálica, alinhado com os outros sobre a almofada; o Virgilio sobre a mesa, tal como o deixou o bibliófilo quando, sacerdote a ponto de consumar o sacrifício, havia pronunciado a fórmula sacramental: “Creio que venderei este”... Havia um papel entre suas páginas, assim que abriu o livro. Era uma recibo manuscrito, sem finalizar:

Vitor Coutinho Fargas, documento de identidade 3554712, com domicílio em Quinta da Solidão, caminho de Colares, km 4, Sintra.
Recebi a quantidade de 800.000 escudos pela venda da obra de minha propriedade “Virgilio. Opera nun recens accuratissime castigata... Venezia, Giunta, 1544”. (Essling 61. Sander 7671). Infolio, 10, 587, 1 c, 113 xilografias. Completa e em bom estado.
O comprador...

 Não encontrou nome nem assinatura; o recibo não havia chegado a ser completado. Corso colocou o papel onde estava. Depois fechou o livro e foi até o local onde esteve na tarde anterior, para assegurar-se de que não ficaram folhas, papéis com sua letra ou algo do tipo. Também retirou papéis do cinzeiro, guardando-os no bolso envoltos numa folha de jornal. Ainda curioso; seus passos ressoavam pela casa vazia. Nem rastro do proprietário.
Ao passar outra vez junto aos livros alinhados no chão, parou por impulso. Muito fácil: um par de raros Elzevires de pequeno tamanho, cômodos de ocultar, atraíam muito sua atenção; porém Corso era um cara sensato. Se as coisas chegaram a torcer-se só serviria para complicar-lhe todo. Assim, com um suspiro íntimo, se despediu da coleção Fargas.


Saiu pela porta do jardim em busca da menina, arrastando os pés sobre as folhas do chão. Encontrou-a sentada em uma pequena escadinha que dava ao lago, entre o cair da água que o anjo gordinho vertia na superfície verdosa, coberta de plantes flutuantes. Olhava a lagoa com um ar absorto, e só o som dos passos a tirou de sua contemplação, fazendo-a voltar à cabeça.
Corso colocou a bolsa de couro sobre o degrau inferior da escada, sentando-se a seu lado. Depois acendeu um cigarro que levava na boca fazia um tempo. Aspirou o fumo com a cabeça inclinada enquanto arrumava o fósforo. Então voltou-se à jovem.
-Agora conte-me tudo.
Sem deixar de olhar a lagoa, ela fez um gesto suave negativo com a cabeça. Nada brusco, nem desagradável. Pelo contrário, o movimento da cabeça, o queixo e os cantos da sua boca, pareciam doces e pensativos como se a presença de Corso, o triste e descuidado jardim, o barulho da água, a comoveram de um modo especial. Com seu casaco e a mochila ainda presa nas suas costas parecia incrivelmente jovem; quase indefesa. E muito cansada.
-Temos que ir  -disse, em voz tão baixa que Corso apenas a ouviu-. À Paris.
 -Primeiro me diz o que tens a ver com Fargas. Com tudo isto.
Moveu novamente a cabeça, em silencio. Corso expulsava o fumo do cigarro. Havia um ar de tanta umidade que ficou flutuando diante dele, condensado, antes de ir-se desaparecendo aos poucos. Olhou a menina.
-Conheces Rochefort?
-Rochefort?
-Ou como se chama. Um cara moreno, com uma cicatriz. Esteve à noite rondando por aqui –a medida que falava, Corso tinha consciência do quão estúpido era tudo aquilo. Terminou com uma careta incrédula, duvidando de suas próprias memórias-. Inclusive falei com ele.
A jovem voltou a negar com a cabeça, sem tirar os olhos da lagoa.
-Não conheço.
-Que fazes aqui, então?
-Cuido de você.
Corso olhou as pontas de seus sapatos, esfregando as mãos dormentes. O zumbido de água na lagoa começava a irritá-lo. Levou os dedos na boca para dar uma última tragada no cigarro, cuja brasa estava a ponto de queimar seus lábios. O sabor era amargo.
-Você está louca, menina.
Lançou fora o resto do cigarro, olhando o fumo que se dissipava diante de seus olhos.
-Como uma cabra –assinalou.
Ela continuava em silêncio. Ao cabo de um momento, Corso extraiu do bolso da garrafa de gim e bebeu um gole, sem oferece-la. Depois a olhou novamente.
-Onde está Fargas?
Demorou um pouco para responder; seu olhar seguia absorto, perdido. Por fim fez um gesto com o queixo.
-Aí.
Corso seguiu a direção de seu olhar. Na lagoa, debaixo do fio de água que saía da boca do anjo mutilado e de olhos vazios, a silhueta imprecisa de um corpo humano flutuava boca abaixo entre as plantas aquáticas e as folhas mortas.




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