quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O Clube Dumas - Capítulo II


     A seguir o segundo capítulo do livro O Clube Dumas de Arturo Perez-Reverte.
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II.            A mão do morto

Milady sorria, e d’Artagnan sentia que se condenaria por aquele sorriso.
(A.  Dumas. Os três mosqueteiros)



            Há viúvas inconsoláveis e viúvas as quais qualquer varão adulto brincaria com gosto o consolo oportuno. Liana Taillefer figurava, sem duvida, a segunda categoria. Era alta e loira, de pele branca e movimentos lânguidos. O tipo de mulher que usa uma eternidade entre extrair um cigarro e expulsar o primeiro sopro de fumo e o faz olhando nos olhos do interlocutor masculino com o tranquilo aprumo que proporcionam certo semelhança com Kim Novak, umas medidas anatômicas generosas, quase excessivas e uma conta bancária –herdeira universal do final Taillefer Editor S.A.- em relação ao termo solvente  resulta um tímido eufemismo. É assombradora a quantidade de dinheiro que se pode amassar, vale a pena o estúpido jogo de palavras, publicando livros de cozinha. As mil melhores sobremesas manchegos, por exemplo. Ou as quinze edições, esgotadas, de um clássico: Os segredos do churrasco.

            A casa estava em um antigo palácio, do marquês dos Alumbres, reconvertido em apartamentos de luxo. E quanto a decoração, o gosto de seus proprietários parecia dos que forjam a base de pouco tempo e muito dinheiro. Só assim se justificava a coexistência de uma porcelana de Lladró –uma menina com um pato, pude apreciar desapaixonadamente Lucas Corso- na mesma vitrine que uns vaqueiros de Sajonia pelos que, sem dúvida, algum antiquário havia velado em devida forma ao finado Enrique Taillefer ou a senhora Taillefer. Havia um secretário Biedermeier, é claro, e um piano Steinwood perto de um tapete oriental e caríssimo. Também um imenso sofá estofado em pele branca, naquele momento, duas pernas extraordinariamente bem torneadas que a saia preta, adequada para o luto, justo um palmo por cima do joelho em posição sentada, porém deixando adivinhar voluptuosas linhas cominho acima, fazia a sombra e o mistério –diria Lucas Corso mais tarde, ao recordar a cena-, situava e marcava de modo apropriado. Convém dizer que o comentário de Corso não deve ser passado por alto, porque, em aparência, era um desses tipos equívocos que um imagina facilmente vivendo com uma mãe velha que tece meias de tricô e aos domingos leva chocolate quente ao filho na cama; filho que nos filmes se vê às vezes caminhando só atrás do caixão, debaixo da chuva, com olhos inchados e murmurando mamãe com desconsolo de um órfão inválido. Porém Corso não havia sido inválido em sua vida. Tampouco tinha uma mãe. E quando alguém chegava a conhecê-lo um pouco, terminava perguntando-se se algum dia tivera.
            -Lamento incomodar nestas circunstâncias-, disse Corso, Estava sentado frente a viúva, com o casaco e a bolsa de lona sobre o colo. Mantinha-se rígido na borda do assento enquanto os olhos de Liana Taillefer –azul aço, grandes e frios – o estudavam de cima abaixo, empenhador em cataloga-lo dentro de alguma espécie conhecida de exemplo masculino. Consciente das dificuldades que ele trazia se submeteu a examinar sem esforçar em causar uma impressão determinada. Conhecia o procedimento, e nesse instante suas ações iam ao chão na bolsa de valores de Taillefer S.A. viúva. Isso limitava a questão a uma espécie de desdenhosa curiosidade, após fazê-lo esperar dez minutos no salão após um confronto com uma empregada que, tomando-o por um vendedor, estava a ponto de dar-lhe com a porta na cara. Porém agora a viúva observava de vez em quando o carpete que Corso havia tirado da bolsa, e as coisas começaram a mudar. E quanto a ele, procurou manter através de seus óculos torcidos o olhar de Liana Taillefer, evitando armadilhas –Scylla e Caribdis: Corso era de Letras- constituídas pelas pernas, ao sul, e o busto –exuberante era a palavra, se disse; levou um tempo dando voltas que o suéter de angorá preto moldava de forma devastadora, ao norte.
            -Seria de muita ajuda –disse por fim- saber se você conhecia a existência deste documento.
            Pousou o carpete em suas mãos e ao faze-lo roçou de modo involuntário os dedos de unhas largas, pintadas em vermelho sangue. Ou talvez os dedos roçaram a ele. De qualquer forma, o levíssimo contato indicou que as ações de Corso estavam se elevando; dessa forma pareceu o apropriado coçar o cabelo sobre a testa, com a falta de jeito justa para que ela comprovasse que incomodar a viúvas belas não era sua especialidade. Agora os olhos azuis não olhavam o carpete, senão a ele, e o faziam com um vulto de interesse.
            -Porque eu conheceria? –perguntou a viúva. Tinha a voz grave, um pouco rouca. O eco de uma noite ruim. Ainda não havia separado as tampas de plástico e continuava atenta a Corso, como se aguardasse algo mais antes de satisfazer sua curiosidade abrindo o carpete. Ajustou os óculos sobre a ponta do nariz e compôs um gesto grave, de circunstancias. Estavam na fase de protocolos, assim que reservo o eficaz sorriso honesto para o momento oportuno.
            -Até pouco tempo, era de seu marido –Vacilou um segundo antes de terminar a frase-. Que descanse em paz.
            Ela assentiu lentamente, como se isso explicasse tudo, e abriu o carpete. Corso olhava sobre seu ombro, na direção da parede. Ali, entre um TAPIES correto e outro óleo de letra ilegível, havia emoldurado um trabalho infantil com flores de várias cores, nome e data: Liana Lasauca. Anos 1970-71. Corso se comoveu como se as flores, os pássaros bordados e as meninas com meias e tranças loiras produzissem sensibilidade, do que foram. Porém, não era seu caso. Assim moveu o olhar até outro quadro, mais pequeno e de prata, onde o extinto Enrique Taillefer Editor S. A., com catavinos de ouro ao pescoço e avental que lhe dava um ar vagamente maçônico, sorria à câmera no momento de dispor com um de seus sucessos editoriais aberto com a mão direita, a cortar um leitão no estilo segoviano com um prato na esquerda. Tinha um aspecto plácido, rechonchudo e barrigudo, feliz diante da perspectiva do animal esparramado na fonte; e Corso disse que, ao menos, sua prematura morte o havia poupado diversos problemas de colesterol e         ácido úrico. Também perguntou, com fria curiosidade técnica, como ele conseguia em vida quando Liana Taillefer necessitava de um orgasmo. Só com esse pensamento dirigiu outro breve olhar sobre o busto e as pernas da viúva, antes de concluir de acordo consigo mesmo. Parecia mulher demais para se conformar com o leitão.
            -Isto é de Dumas –disse ela, e Corso se ergueu um pouco, em alerta e lúcido. Liana Taillefer batia com uma de suas unhas vermelhas o plástico que protegia as páginas-. O famoso capítulo. Claro que eu conheço –ao inclina-se, o cabelo deslizou pela face; atrás da cortina a loira observava seu visitante com suspeita- ... Porque você o tem?
            -Seu marido o vendeu. Pretendo autentica-lo.  A viúva encolhia os ombros.
            -Que eu saiba, é autêntico –suspirou largamente, devolvendo o carpete-. Vendido, disse? Que raro –pareceu refletir-. Enrique tinha muito apreço por estes livros.
            -Talvez recorde aonde posso adquiri-los.
            -Não saberia dizer. Creio que alguém os deu de presente.
            -Era colecionador de documentos autógrafos?
            -O único que conheci foi esse. –Nunca comentou sua intenção de vendê-lo?
            -Não. Você me traz uma novidade. Quem é o comprador?
            -Um livreiro, meu cliente. Será leiloado quando o entregar.
            Liana Taillefer decidiu concede-lo algo de mais interesse; as ações de Corso experimentaram uma nova subida, moderada, na bolsa local. Tirou os óculos para limpa-los com o pano enrugado. Sem eles seu aspecto era mais vulnerável e isso ele sabia de sobra. Todo mundo via a necessidade de ajuda-lo a cruzar a rua quando estreitava seus olhos como um coelho míope.
            -Esse é seu trabalho? –perguntou ela-. Autenticar manuscritos?
            Fez um vago gesto afirmativo. A viúva estava um pouco desfocada ante seus olhos, mais próxima.
            -Às vezes. Também busco livros raros, gravados e coisas nesse estilo. Cobro por isso.
            -Quanto cobra?
            -Depende –colocou os óculos, e os contornas da mulher se delinearam de novo, nítidos, em sua retina-. Às vezes muito e outras pouco; o mercado tem seus altos e baixos.
            -Uma espécie de detetive, não? –aventurou-se ela, em tom divertido-. Um detetive de livros.
            Era o momento de sorrir. Sorriu mostrando os caninos, com uma modéstia calculada ao milímetro. Adote-me no ato, dizia seu sorriso.
            -Sim. Suponho que poderíamos chamar assim.
            -E me visita por mando de seu cliente...
            -Isso é –já podia permitir-se aparentar maior segurança, assim que bateu no manuscrito com as mãos.-. Afinal de contas, esse veio daqui. Da sua casa.
            Ela assentiu lentamente, observando o carpete. Parecia refletir.
            -É raro –disse num momento-. Não imagino Enrique vendendo esse original de Dumas. Ainda que nos últimos dias se comportava de forma estranha... Como você disse que se chama o livreiro? O novo proprietário.
            -Não disse.
            Olhou-o de cima abaixo, com surpresa tranquila. Não parecia acostumada a conceder aos homens mais de três segundos antes de se ver satisfeita em seus desejos.
            -Diga-me, então.
            Corso esperou um pouco, o necessário para que as unhas de Liana Taillefer iniciassem um tamborilo impaciente no braço do sofá.
            -Se chama La Ponte –declarou enfim. Era outro de seus truques: fazer que os demais se atribuíssem triunfos que, na realidade, não eram senão concessões triviais por sua parte. O conhece?
            -Claro que o conheço; foi provedor do meu marido –franziu o cenho com desagrado-. Vinha aqui de vez em quando traze-lhe folhetins estúpidos.Suponho que tenha um recibo... Talvez uma cópia, se não se importa.
            Corso assentiu vagamente enquanto se inclinava um pouco até ela.
            -Seu marido gostava muito de Alejandro Dumas?
            -Dumas? –Liana Taillefer sorriu. Jogou o cabelo para traz e agora seus olhos brilhavam, zombadores-. Venha comigo.
            Se colocou de pé com um desses gestos que durava para sempre, e alisou a saia olhando ao redor como se tivesse esquecido o objetivo de seu movimento. Era muito mais alta que Corso, apesar de que calçava um salto baixo. O levou até um gabinete ao lado. Enquanto a seguia, ele observou suas costas largas como de uma nadadora, e a cintura estreita, justo no limite. Calculou-a uns trinta anos. Parecia a caminho de converter-se em uma daquelas matronas nórdicas, com quadris que nunca vão ao sol, feitos para dar luz sem esforço de loiros Eriks e Sigfridos.
            -Oxalá fosse só Dumas –disse ela, indicando o interior do gabinete-. Olhe isto.
            Corso obedeceu. As paredes estavam cobertas de estantes de madeira que se curvavam pelo peso de grossos livros. Sentiu que suas glândulas segregavam saliva, por reflexo profissional. Deu uns passos até as estantes enquanto tocava os óculos: A condessa de Charny, A. Dumas, oito volumes, edições A Novela Ilustrada, diretor literária Vicente Blasco Ibáñez. As duas Dianas, A. Dumas, três volumes. Os Mosqueteiros, A. Dumas, edições Miguel Guijarro, gravuras de Ortega, quatro volumes. O conde de Montecristo, A. Dumas, quatro volumes de Juan Ros editor, gravuras de A. Gil... Também quarenta volumes de Rocambole, por Joson du Terrail. Os Pardellanes de Zavaco, completos. E mais Dumas, junto a nove volumes de Victor Hugo e outros tantos de Paul Feval, cujo Jorobado figurava em encadernação de luxo, tafilete vermelho e cantos dourados. E o Pickwick de Dickens, em tradução de Benito Pérez Galdós, flanqueado por vários de Barbey d’Aurevilly e pelo Os mistérios de Paris, de Eugenio Sue. Todavia mais Dumas –Os Quarenta e Cinco, O colar da rainha, Os companheiro de Jehú- e Vingança corsa, de Merimée. Quinze volumes de Sabatini, vários de Ortega e Frías, Conan Doyle, Manuel Fernandez e Gonzalez, Mayne Reid, Patricio da Escosura...
            -Impressionante –comentou Corso-. Quantos volumes há aqui?
            -Não sei. Dois mil e pouco. Três mil. Quase todos de primeira edição, tal como foram encadernados depois de publicar-se para entregas... Outros são volumes ilustrados. Meu maridos os colecionava com frenesi, pagando oque pediam por eles.
            -Um verdadeiro amante de livros, pelo que vejo. –Amante? –Liana Taillefer esboçou um sorriso indefinido-. Foi sua verdadeira paixão.
            -Eu pensava que a gastronomia...
            -Os livros de cozinha eram sua forma de ganhar dinheiro. Enrique tinha algo de rei Midas: qualquer receita barata se convertia em sucessos editoriais em suas mãos. Mas a sua foi essa. Gostava de fechar-se aqui e manusear esses velhos livros. Geralmente impressos em papel ruim, e sua obsessão era conserva-los. Vê o termômetro e o indicador de umidade? Podia recitar paginas inteiras de suas obras favoritas. Mesmo se escapavam exclamações dele como voto a tal, empate e coisas assim. Os últimos meses passou escrevendo.
            -Um romance histórico?
            -Uma série. Atendo-se de clichês de gênero, é claro –foi até uma estante e  pegou um pesado manuscrito, folhas tecidas a mão. Estavam escritos com letra redonda e grande, de um lado-. Oque acha desse?
            -A mão do morto ou o pajé de Ana de Áustria –leu Corso em voz alta-. Sem duvida é, bem... –passou um dedo numa sobrancelha, em busca do termo apropriado às circunstâncias-.  Sugestivo.
            -E leviano –adiantou ela, devolvendo o manuscrito a seu lugar-. E cheio de anacronismos. E absolutamente estúpido, posso te assegurar. Acredite, sei do que estou lhe falando: ao final de cada sessão de escrita me lia folha a folha, de principio ao fim –bateu rancorosa sobre o livro, caligrafado com maiúsculas-. Meu Deus. Asseguro-te que cheguei a odiar esse pajé e a zorra de sua rainha.
            -Tinha intenção de publica-lo?
            -Claro que sim. E com pseudônimo. Suponho que elegeu Tristán de Longueville, Paulo Florentini ou algo nesse estilo. Era muito próprio dele fazer coisas assim.
            -E enforcar-se? Também era próprio dele?
            Com o olhar fixo nas paredes cobertas de livros, Liana Taillefer ficou em silêncio. Um silêncio incômodo, disse Corso; talvez algo forçado, com ar absurdo como um recurso. Igual a uma atriz a espera de prosseguir seu diálogo de modo convincente.
            -Nunca saberei o que aconteceu –respondeu por fim, e de novo seu aprumo era perfeito-. A última semana esteve quieto e deprimido; raramente saia desse gabinete. Logo, uma tarde, deu um estrondo e foi à rua. Voltou de madrugada; eu estava na cama e ouvi fechar a porta. Pela manhã, os gritos da empregada me acordaram: Enrique havia se enforcado da lâmpada.
            Agora olha a Corso, atenta ao efeito. Não parecia pesaroso demais, meditou o caçador de livros recordando a foto do avental e do leitão. Em algum momento poderia surpreender em seus olhos, como se esses resistissem em derrubar uma lágrima, mas seguiram irrepreensivelmente secos. Isso não significava nada. Gerações de maquiagem que escondem as emoções tem ensinado às mulheres controlar seus sentimentos. E a maquiagem de Liana Taillefer, uma sombra clara que acentuava o tom dos seus olhos, era perfeita.
            -Deixou alguma carta? –perguntou Corso-. Os suicidas geralmente deixam.
            -Decidiu economizar o trabalho. Nenhuma explicação, nem umas letras. Nada. Essa desconsideração me tem custado muitas perguntas de um juiz e uns policiais. Desagradável, te asseguro.
            -Entendo.
            -Sim. Suponho que sim.
            Liana Taillefer tinha dado por terminado a entrevista. Foram até a porta e ali lhe estendeu a mão. Com o carpete debaixo do braço e a bolsa no ombro, Corso estendeu a sua, sentindo entre os dedos e a palma aquele contato firme. Para si atribuía boa qualificação. Nem viúva alegre, nem devastada pela dor, nem frieza do tipo que foi imbecil ou que está finalmente sozinha ou já pode sair do armário, querida. Que dentro do armário havia alguém, isso era provável, porém não cabia a Corso dizer. Como tampouco o suicídio de Enrique Taillefer S. A., estranhamente –e foi muito menos, com certeza, com o pajé da rainha e o manuscrito voador- que parece. Porém, igual que à linda viúva, esses não eram seus assuntos. No momento.
            Olhou Liana Taillefer. Me encantaria saber que está lhe beneficiando, pensou com tranquila curiosidade. Mentalmente rastreou um retrato robô: maduro, elegante, culto, com dinheiro. Uns oitenta e cinco por cento de chance de que fora amigo do finado. Depois se perguntou se o suicídio do editor teria algo haver com aquilo, antes de interromper-se com desgosto. Deformação profissional ou o que fora, as vezes se abandonava o absurdo costume de pensar como um policial. O pensamento o estremeceu até a medula. Um nunca sabe que tenebrosos poços de perversidade, ou estupidez se esconde no fundo de sua alma.
            -Quero agradecer-lhe –disse enquanto tirava de seu repertório o mais tocante sorriso simpático que foi capaz de compor no tempo que foi-me dedicado.
            O sorriso se perdeu no vazio; ela olhava o manuscrito Dumas.
            -Não tem que me agradecer nada. Só um interesse lógico para ver como terminará isto.
            -A manterei informada... Outra coisa. Tem intenção de conservar a coleção do seu marido, ou pensa livrar-se dela?
            Olhou-o, desconcertada. Corso sabia por experiência que, depois do falecimento de um bibliófilo, um dia depois de sair o caixão, saía a biblioteca pela mesma porta. Estranhava-se que não houvesse nenhum corvo concorrente a ele. Depois de tudo, Liana Taillefer, segundo confissão própria, não compartilhava os gostos literários de seu marido.
            -A verdade é que não tive tempo de tempo sobre isso... Quer dizer que lhe interessam esses livros?
            -Poderia ser.
            Ela hesitou um momento. Talvez um par de segundos mais do que o necessário.
            -É tudo muito recente –disse por fim, com o suspiro adequado-. Talvez dentro de alguns dias.
            Corso apoiou a mão no corrimão e começou a descer as escadas. Arrastava os pés, demorando nos últimos degraus com certo mal-estar, igual quando alguém sai de algum lugar de onde esquecera de algo mas não sabe muito bem do que se trata. Porém ele tinha a certeza de que não esquecera nada. Quando chegou ao relance levantou os olhos e viu que Liana Taillefer ainda estava no primeiro degrau, observando-o. Tinha, ou ao menos pareceu, um ar preocupado e curioso. Corso desceu alguns degraus mais e, como em uma cena de cinema em câmera lenta, o seu olhar caiu abaixo. Perdendo de vista o inquisitivo olhar dos olhos azuis, sua última imagem se deslizou pelo corpo de Liana Taillefer, busto e quadris, até as penas de carne firme e branca que assentavam um pouco separadas, sugestivas e fortes como as colunas de um templo.
            Todavia dava voltas na cabeça de Corso quando cruzou a porta e saiu à rua. Imaginava ao menos cinco perguntas que requeriam resposta, assim que ia sendo necessárias por ordem de importância. Parou na calçada, frente ao portão do Retiro, e olhou casualmente a sua esquerda, na espera de um táxi. Havia um enorme Jaguar estacionado a poucos metros. O chofer, de uniforme cinza escuro, quase preto, lia um jornal apoiado no capô. Nesse momento tirava a vista do jornal, e seus olhos encontraram os de Corso. Foi só um segundo que seus olhares se cruzaram, e logo o chofer voltou a sua leitura. Era moreno, com bigode, e uma cicatriz pálida lhe franzia o rosto de cima abaixo. Seu aspecto produziu em Corso uma sensação familiar: se parecia com alguém. Talvez, lembrou, ao homem alto da caixa de música no bar de Makarova. Ainda que havia algo mais. Seu aspecto mexia numa lembrança remota, imprecisa; mas antes de ter tempo de analisa-lo apareceu um táxi livre, ao que um indivíduo com capa de chuva e pasta de executivo acenava desde o outro lado da rua.
            Aproveitou o taxista olhava em sua direção, parou ao lado com rapidez e fez isso com o carro na cara do outro.
            Pediu ao motorista que baixasse o volume da rádio enquanto se acomodava no assento traseiro, olhando fixamente ao tráfico ao seu redor. Estava satisfeito com a paz conseguida cada vez que fechava a porta do taxi. Era o mais parecido a uma trégua com o mundo exterior: tudo em silêncio, do outro lado da janela, durante o trajeto. Apoiou a cabeça em respaldo, encantado com a perspectiva.
            Era hora de pensar em coisas sérias; como o Livro das Nove Portas e a viagem a Portugal, primeira etapa do trabalho. Porém Corso não podia se concentrar. A entrevista com a viúva de Enrique Taillefer deixava muitas questões no ar, e isso lhe produziu uma estranha inquietude. Algo se ia das mãos em tudo aquilo, como contemplar uma paisagem a partir da perspectiva errônea. E ainda mais demorou os sinais em vermelho em cair a ficha que a imagem do chofer do Jaguar intrometia nas suas reflexões. Isso o fez sentir-se irritado. Tinha certeza de nunca o ter visto na vida, antes do bar de Makarova. Porém uma lembrança irracional percutia em seu interior. Conheço-te, disse. Estou certo, que sim. Certa vez, faz muito tempo, tropecei com um fulano como você. E sei que estás aí, em alguma parte. No lado escuro da minha memória.
Grouchy não apareceu em nenhuma parte, porém aquilo havia deixado de ter importância. Os prussianos de Bulow se retiravam das alturas de Chapelle St. Lambert, com a cavalaria rápido de Sumont e Subervie ligada nas botas. Fazia o flanco esquerdo, nenhum problema: as formações vermelhas da infanteria escocesa estavam ultrapassadas e quebradas após carregar os soldades coraceros franceses. No centro a divisão Jerome havia tomado, por fim, Hougoumonto e ao norte de Mont St. Jean, os quadros azuis da boa e velha Guarda se agruparam lenta porém implacavelmente, com Wellington recuando-se em desordem deliciosa sobre aquela aldeia, Waterloo. Foi só dar o golpe de graça.
Lucas Corso observou o terreno. A solução era Ney, é claro. O corajoso dentre os corajosos. O colocou na frente, com Erlon e a divisão Jerome, ou o que sobrava dela, e os fez avançar au pas de charge pela estrada de Bruxelas. Quando estabeleceram contato com as formações britânicas, Corso se reconstou um pouco na cadeira e conteve a respiração, seguro das implicações do seu ato: acabava de decidir, em apenas meio minuto, sobre a vida ou a morte de 22.000 homens. Saboreando aquela sensação recriou as linhas azuis e vermelhas, no verde suave do bosque de Soignes, nas manchas marrons das colinas. Por Deus que era uma linda batalha. O choque foi duro, pobres diabos. O corpo do exército de Erlon se despencou como a cabana de palha de porco preguiçoso, mas Ney e o povo de Jerome mantiveram sua linha. A Velha Guarda avançava varrendo todo o passo, e as pinturas inglesas desapareceram um atrás do outro do mapa. Wellington não tinha mais opção além de retirar-se, e Corso bloqueou o seu caminho até Bruxelas com a reserva da cavalaria francesa. Depois, lenta e deliberadamente, desferiu o golpe final. Mantendo Ney entre o polegar e o indicador, o fez avançar três hexágonos. Somou fatores de potencia, consultado as tabelas: a relação era de 8 a 3. Wellington estava acabado. Ficava o pequeno resquício deixado ao azar. Consultou a tabela de equivalências, comprovando que bastaria com um 3. Todavia, teve uma pontada de inquietude enquanto recorria aos dados para decidir o pequeno fator de azar correspondente. Mesmo com a batalha ganhada, perder a Ney no último minuto era para amadores. O caso é que obteve um fator cinco. Sorria com o extremo da boca ao dar um afetuoso tapa com a unha sobre a ficha azul de Napoleão. Imagino como se sente, companheiro. Wellington e seus últimos cinco mil infelizes estavam mortos ou prisioneiros, e o Imperador acabava de ganhar a batalha de Waterloo. Alonsanfán. Todos os livros de história podiam ir para o diabo.
Soltou um longo bocejo. Sobre a mesa, junto ao tabuleiro que representava a escala 1:5000 o campo de batalha, entre livros de consultas gráficas, uma xícara de café e o cinzeiro cheio de bitucas, o relógio marcava três da madrugada. De um lado, sobre o bar móvel, de rótulo vermelho igual ao de um revestimento britânico, Johnnie Walker fazia um gesto malicioso no meio do seu passo. Vermelho sem vergonha, pensou Corso. Não se importava que milhares de compatriotas acabassem de comer pó em Flandes.
Virou ao inglês para dedicar sua atenção a uma garrafa intacta de Bols embutida numa estante da parede, entre o Memorial de Santa Helena em dois volumes e uma edição francesa de O vermelho e o preto. Abriu a garrafa com este último aberto sobre a mesa, jogando-o ao azar enquanto colocava gim em um copo.
... As Confissões de Rousseau era o único livro através do qual sua imaginação representava o mundo. A coleção de boletins da Grande Armée e o Memorial de Santa Helena completavam seu Alcorão. Teria matado por esses três livros. Jamais creu em nenhum outro.
Bebeu em pé, em goles, enquanto alongava articulações rígidas. Ainda deu um último olhar para o campo de batalha de onde, após a carnificina, parava o ruído das armas. Pegou o resto do gim, sentido-se como o sonho de um deus ébrio, que manejara vidas do mesmo modo que soldadinhos de chumbo. Imaginou o lord Arturo Wellesley, duque de Wellington, ao entregar sua espada a Ney. Havia jovens mortos no barro, cavalos sem cavaleiros, e um oficial dos Escoceses Grises agonizante embaixo do carro destroçado de um canhão, com um pingente de outro –retrato da mulher e de cabelos loiros- entre os dedos ensanguentados. Ao outro extremo das sombras em que se ouvia os camponeses da última valsa. E a bailarina contemplava desde a borda, com seu cequim na frente refletindo as chamas de fogo, disposta a cair em mãos do duende da tabacaria. Ou do comerciante da esquina.
Waterloo. Podiam descansar tranquilos os ossos do velho granadeiro, seu tataravô. Imaginou-o no interior de qualquer pequeno quadro azul sobre o tabuleiro, na linha marrom que representava a estrada de Bruxelas, com o rosto coberto de fuligem, bigode queimado pela pólvora. Avançava rouco, febril depois de três dias lutando com a baioneta. Tinha um olhar ausente que Corso imaginou mil vezes em todos os homens, em todas as guerras. E levantava exausto, com pele de urso na ponta do fusil, com seus camaradas. Viva o Imperador. O solitário, rechonchudo e canceroso fantasma de Bonaparte estava vingado. Descanse em paz. Hip, hip. Hurra.
Encheu outro copo de Bols e fez um silencioso brinde em direção ao sabre pendurado na parede, a saúde da sombra fiel do granadeiro Jean-Pax Corso, 1770-1851, Legião de Honra, cavaleiro da Ordem de Santa Helena, bonapartista irredutível até a sua morte, cônsul da França da mesma cidade mediterrâneo onde um século mais tarde nasceria seu tataraneto. E com o sabor do gim na boca recitou entredentes o único patrimônio transmitido de um ao outro, através daquele século e dos Corsos que agora desapareciam com ele:
            ... e o Imperador, à frente
            de seu exército impaciente
            cavalgará em um clamor.
            E armado sairá da terra,
            e outra vez irei a guerra
            atrás do Imperador.
            Ria sozinho quando pegou o telefone, discando o número de La Ponte. O ruído do discar reinava sobre o silêncio do quarto. Havia livros nas paredes, telhados molhados de chuva ao outro lado da varanda escura. A vista não era grande coisa dali, exceto no anoitecer do inverno, quando o sol pente se filtrava entre o fumo das calefações e a contaminação da rua, e o ar. Parecia se inflamar de vermelho e ácido a modos de uma cortina espessa. A mesa de trabalho, o computador e o tabuleiro de Waterloo estavam situados ante esse panorama, junto à varanda naquela noite que caíam gotas de chuva. Nas paredes não havia lembranças, quadros nem fotos. Só o antigo sabre da Velha Guarda com sua bainha em latão e couro. Quando recebia visitantes, estes se estranhavam de não encontrar ali, salvo os livros e o sabre, nenhum rastro de vida pessoal, qualquer dessas âncoras que todo ser humano estabelece, por instinto, com sua memória ou seu passado. Igual os objetos ausentes daquela casa, o mundo que levava Lucas Corso esteve extinguido muito tempo. Nenhum dos rostos que as vezes se aperfeiçoam em sua memória o haviam reconhecido, de voltar à vida; e talvez fosse melhor assim. Era como se ele dono daquele local jamais teve, ou deixou, nada para trás. Como se houvesse bastado sempre a si mesmo, com nada, igual que um vagabundo estudioso e urbano que levara seu pacote no forro do casaco. E, portanto, os poucos privilegiados que o viram em algum desses anoiteceres avermelhados, sentado na varando com os olhos deslumbrados, do oeste, turvo de gim holandês, dizem que sua cara de coelho desamparado parecia sincera.
            A voz sonolenta de La Ponte soou no telefone.
            -Acabo de esmagar Wellington –informou Corso.
            Após um silêncio desconcertado, La Ponte respondeu que estava muito feliz por ele. A pérfida Albión, a torta de rins e a calefação de moedas nos hotéis miseráveis. Aquele sipal, Kipling, e toda essa  banda de rua de Balaclava, Trafalgar e As Malvinas. E quanto a Corso, o recordava que eram –o telefone ficou silencioso, enquanto La Ponte buscava seu relógio- as três da madrugada. Depois balbuciou algo incoerente, onde só se ouviram com claridade as palavras maldito e desgraçado, nessa ordem.
Corso ainda ria para si próprio quando desligou o aparelho. Uma vez ligou para La Ponte à cobrar de um telefone público, em Buenos Aires, só para contar-lhe uma piada: a puta tão feia que morreu virgem. Há, há. Muito bom. Porém te farei comer a fatura do telefone quando voltar, maldito imbecil. E aquela vez, anos atrás, o dia que amanheceu abraçado a Nikon, seu primeiro movimento foi pegar o telefone para  contar a La Ponte que havia conhecido uma mulher bonita e que tudo se parecia muito a estar apaixonado. Cada vez que desejava, Corso era capaz de fechar os olhos e ver Nikon acordar lentamente, o cabelo transbordando no travesseiro. Com o aparelho na orelha a descreveu a La Ponte, sentindo uma estranha emoção, uma ternura inexplicável e desconhecida enquanto falava pelo telefone e ela escutava olhando-o em silêncio; e sabia que a voz que soava do outro lado da linha –fico feliz, Corso, amigo, bendito seja, já era hora, fico feliz por você- era sincera ao compartilhar o seu triunfo, sua felicidade. Essa manhã gostava de La Ponte tanto como a ela. Ou talvez ela tanto como a ele.
Desde então havia passado muito tempo. Corso apagou a luz. A chuva seguia caindo na noite. No quarto, sentado na borda da cama vazia, acendeu um último cigarro imóvel na penumbra, aceitando o eco da respiração ausente, entre os lençóis. Depois estendeu uma mão para coçar o cabelo que já não estava ali, sobre o travesseiro. Nikon era seu único remorso. Agora a chuva assolava afora, e as gotas de água, na janela, descomponham pequenos reflexos da luz exterior, penetrando as folhas, instáveis, correntes pretas, pequenas sombras que caem sem rumo, como os pedaços de uma vida.
            -Lucas.
            Pronunciou seu próprio nome em voz alta como ela costumava faze-lo, a única que sempre o chamou assim. Essas cinco letras eram um símbolo da pátria comum devastada que, em outro tempo, ambos desejaram compartilhar. Corso centrou sua atenção na brasa do cigarro, vermelha no escuro. Creu amar muito a Nikon, antes. Quando a encontrava bela e inteligente, infalível como uma encíclica pontifícia, apaixonada igual suas fotografias em branco e preto: meninos de olhos grandes, idosos, cães de olhares fiéis. Quando a via defender a liberdade dos povos e firmar manifestos a favor dos intelectuais nas prisões, as etnias oprimidas e coisas assim. Também das focas. Uma vez conseguiu que ele escrevesse algo sobre as focas.
            Se levantou lentamente da cama para não despertar o fantasma que dormia a seu lado, seguindo o ritmo de uma respiração que as vezes imaginava escutar de verdade. Está morto como seus livros. Você jamais quis alguém, Corso. Essa foi a primeira e ultima vez que ela pronunciou só o seu apelido; a primeira e ultima vez que o negou seu corpo, antes de ir embora para sempre. Em busca daquele filho que ele nunca quis ter.


            Abriu a janela, sentindo o frio úmido da noite enquanto as gotas d’água lhe molhavam o rosto. Deu uma ultima tragada no cigarro e depois o deixou cair, ponto vermelho sumindo na escuridão, interrompia o trajeto, ou invisível, fazia as sombras. Choveria essa noite também sobre outros lugares. Sobre as ultimas pegadas de Nikon. Sobre os campos de Waterloo, o tataravô Corso e seus camaradas. Sobre a tumba vermelha e preta de Julián Sorel, guilhotinado por acreditar que, desaparecido Bonaparte, morreram as estátuas de bronze nos velhos caminhos esquecidos. Estúpido erro. Lucas Corso sabia, melhor que ninguém, que ainda era possível eleger campo de batalha e cobrar o estipêndio como soldado perdido e lúcido, montando guarda entre os fantasmas de papel e couro, entre a força das ondas de milhares de naufrágios.

  

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