quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

O Clube Dumas - Capítulo V

V.       Remember
~
Estava sentado de forma como o havia
deixado em sua poltrona, colocado
diante da chaminé.
(A.Christie. O assassinato de R. Ackroyd)

        É aqui onde entro em cena pela segunda vez, pois foi então quando Corso recorreu a mim novamente. E o ajudei, acredito, uns dias antes de ir-se à Portugal. Segundo me confiou mais tarde, a essas alturas suspeitava já que o manuscrito Dumas e As Nove Portas de Varo Borja eram só as pontos do iceberg, e que para sua compreensão era necessário conhecer antes as outras histórias que se rodeavam entre si do mesmo modo que aquela corda nas mãos de Enrique Taillefer. Isso não era fácil, cheguei a dizer-lhe, pois em literatura nunca há limites nítidos; tudo se apoia em algo, as coisas se sobrepõem umas as outras e terminam sendo um complicado jogo intertextual a base de espelhos e sorrisos russos, onde estabelecer um feito preciso, uma paternidade concreta, implica riscos que só certos colegas muitos estúpidos ou muito seguros de si mesmos se atrevem a correr. É como dizer a Robert Graves se nota Quo Vadis e não Suetonio, ou Apolonio de Rodas. E quanto a mim, só sei que nada sei. E quando quero saber busco nos livros, estes que nunca faltam a memória.

        -O conde de Rochefort é um dos mais importantes personagens secundários de Os três Mosqueteiros –expliquei a Corso quando veio outra vez a minha procura- É agente do cardeal e amigo de Milady; o primeiro inimigo de d’Artagnan. Posso estabelecer a data exata: primeira segunda-feira de abril de 1625, em Meung-sur-Loire... Refiro-me ao Rochefort da ficção, é claro, ainda que existisse um personagem similar à Gatien de Courtilz, nas supostas Memórias do verdadeiro d’Artagnan, descreve abaixo do nome de Rosnas... Porém, o Rochefort da cicatriz não teve existência real. Dumas tomou esse personagem de outro livro, as Memoires de MLCDR (Monsieur le comte de Rochefort), possivelmente apócrifas e atribuídas, também, a Courtilz. Há quem diga que poderiam referir-se a Henri Louis de Aloigny, marquês de Rochefort, nascido por volta de 1625; porém isso já é pisar levemente.
        Olhei até as luzes do tráfico vespertino que discorria pelos bulevares ao outro lado da janela do café de onde tenho meu encontro. Acompanhavam-nos alguns amigos em volta da mesa coberta de jornais, taças e cinzeiros cheios de fumaça: um par de escritores, um pintor em baixa, um jornalista em ascensão, um ator de teatro e quatro ou cinco estudantes dos que se sentam em um canto e mantém a boca fechada todo o tempo, olhando-te como quem olha a Deus. Entre eles, com o casaco posto e o ombro apoiado no cristal da janela, Corso bebia gim e tomava notas de vez em quando.
        -Por certo –disse-. O leitor que passa dos sessenta e sete capítulos de Os três Mosqueteiros esperando o duelo que enfrente a Rochefort com d’Artagnan, fica decepcionado. Dumas trata da questão em três linhas e escamoteia o lance, ou os lances; porque quando reencontramos o personagem em Vinte anos depois, d’Artagnan e ele se haviam brigado três vezes e Rochefort leva outras tantas cicatrizes de estocadas no corpo. Portanto já não permanece entre ele o ódio, senão esse retorcido respeito que só é possível entre dois velhos inimigos. De novo os azares da aventura fazem que ambos militem em grupos distintos; mas na cumplicidade amistosa dos gentilhomens que se conhecem há vinte anos... Rochefort cai em desgraça com Mazarino, escapa da Bastilla, participa da evasão do duque de Beaufort, conspira na Fronda e falece nos braços de d’Artagnan, que o atravessa com sua espada sem reconhecê-lo num tumulto.
        “Era minha estrela”, disse ao gascão, mais ou menos. “Curei-me de três estofadas suas, porém não curarei-me da quarta”. E morre. “Acabo de matar a um antigo amigo”, contará d’Artagnan a Porthos... Esse é todo o epitáfio pelo velho agente de Richelieu.
        Aquilo iniciou uma animada discussão em várias bandas. O ator, um velho galã que interpretou o Montecristo em um serial televisivo e que essa tarde não tirava o olho da jornalista, se lançou para expor com brilhantes suas recordações sobre os personagens, aplaudido pelo pintor e os dois escritores. Assim passamos de Dumas a Zevaco e Paul Feval, e terminamos situando uma vez mais o indiscutível magistério de Sabatini frente a Salgari. Recordo que alguém mencionou timidamente Julio Verne, porém foi objeto de deboche geral. Naquele contexto apaixonado de capa e espada, Verne e seus heróis frios, desprovidos de alma, não eram aceitáveis.
        E quanto à jornalista, uma dessas garotas da moda com coluna no dominical de um jornal importante, sua memória literária começava em Milan Kundera. Assim se manteve quase todo o tempo em prudente expectativa, assentindo com alívio cada vez que algum título, anedota ou –o Cine Negro, Yáñez, a estocada de Neversle removia a lembrança de uma entrevista na televisão. Enquanto, Corso, paciente como o caçador tranquilo que era, não me tirava o olho de cima de seu gim, atento à ocasião de centrar outra vez o tema. Assim o fez, por efeito, aproveitando o silêncio embaraçoso que se instalou em torno da mesa quando a jornalista estabeleceu que, de todos os modos, ela encontrava os relatos de aventura muito ligeiros, não? Superficiais, não, sabe o que quero dizer. Ou seja.
        Corso mordia a ponta de seu lápis Faber:
        -Como você interpreta, senhor Balkan, o papel de Rochefort na história?
        Olharam-me todos e em especial os estudantes, entre os que dois eram garotas. Não sei por que em determinados ambientes me consideram uma espécie de bonzo das belas letras, e cada vez que abro a boca as pessoas ficam em silêncio, dispostos a ouvir dogmas de fé. Incluindo um artigo meu, na revista literária adequada, pode consagrar ou afundar um escritor que está começando. Absurdo, por certo; porém é a vida. Se não no último prêmio Nobel, o autor de Yo, Onán, Em busca de mim mesmo e a archifamosa Oui, e´est moi. Foi minha assinatura que o pôs em circulação faz quinze anos, com folio e meio em Le Monde o dia dos Inocentes. Não me perdoarei jamais, porém assim funcionam as coisas.
        -Ao princípio, Rochefort é o inimigo –apontei-. Simboliza as forças ocultas, a trama negra... É o agente da conspiração diabólica em torno de d’Artagnan e seus amigos; a intriga do cardeal que se esconde nas sombras, colocando suas vidas em cheque...
        Vi como uma das estudantes sorria; mas não pude adivinhar se o gesto, absorto e zombando, era consequência de minhas palavras ou de secretas reflexões alheias ao local. Surpreendeu-me, pois já disse que os estudantes geralmente me escutam com o respeito que mostraria um redator de L’Osservatore Romano ao receber em exclusivo o texto de uma encíclica pontifícia. Isso fez com que me fixasse nela com interesse; ainda que no princípio, quando se uniu a nós com um casaco azul e um monte de livros debaixo do braço, já havia chamado minha atenção por causa de seus inquietantes olhos verde e o cabelo castanho muito curto, como o de um menino. Agora se mantinha sentada um pouco separada, sem integrar-se no grupo. Sempre há jovens ao redor de nossa mesa, alunos de literatura aos que geralmente só convida ao café; porém aquela jovem não havia estado antes. Impossível esquecer seus olhos, cuja tonalidade muito clara, quase transparente, constratava com o rosto moreno e bronzeado de quem passa muito tempo ao sol e ao ar livre. Era dessas garotas esbeltas e flexíveis, com pernas largas que também se adivinhavam morenas debaixo dos tecidos. Ainda retive dela outro detalhe: não tinha anéis, relógio nem brincos; os lóbulos de suas orelhas estavam intactos, sem furos.
        -... Rochefort é também o homem entre visto e nunca alcançado –prossegui, não sem dificuldade em recobrar o fio do discurso-. A máscara do mistério marcada com sua cicatriz. Resume o paradoxo, a impotência de d’Artagnan, que o persegue e não o alcança, quer mata-lo e não pode vinte anos depois, por erro, quando já não é um adversário senão um amigo.
        -Tu d’Artagnan é um pouco azarado –apreciou um do círculo, o escritor de mais idade. De sua última novela havia vendido quinhentos exemplares, porém ganhava muito dinheiro publicando histórias policiais sob o perverso pseudônimo de Emilia Forster. O olhei com reconhecimento, satisfeito pela oportunidade do comentário.
        -Não os resta dúvida. Envenenaram o amor de sua vida. Apesar de suas proezas e dos serviços que presta à Coroa da França, passa vinte anos como obscuro tenente de mosqueteiros. E quando nas últimas linhas do O visconde de Bragelonne consegue o bastão de marechal, que lhe custou quatro volumes e quatrocentos e vinte e cinco capítulos para conseguir, é morto por uma bala holandesa.
        -Como o autêntico d’Artagnan –disse o ator, que havia conseguido situar uma mão nas coxas da colunista prestigiosa.
        Bebi um gole de café antes de assentir. Corso não tirava o olho de cima.
        -Teremos três d’Artagnan –declarei-. Do primeiro, Carloz de Batz Castlemore, sabemos, porque o publicou em seu momento a Gazeta da França, que morreu em 23 de junho de 1673 de um tiro na garganta, em Maestrich. A metade de seus homens caiu com ele... Aparte esse detalhe póstumo, em vida resultou só um pouco mais afortunado que seu homônimo de ficção.
        -Também era gascão?
        -Sim, de Lupiac. Ainda existe esse povo, e uma lápide de lembrança: “Aqui nasceu em 1615 d’Artagnan, cujo verdadeiro nome foi Charles de Batz, morto no assalto de Maestrich em 1673.”
        -Há uma desfase histórica –apontou Corso consultando suas notas-. Segundo Dumas, d’Artagnan tinha dezoito anos no começo da novela, em 1625. Porém nesse momento o verdadeiro d’Artagnan só contava dez –sorriu educado e cético-. Jovem demais para manejar a espada.
        -Sim –concedi-. Dumas arranjou isso para que pudesse viver a aventura das agulhas de diamante com Richelieu y Luis XIII. Carlos de Batz chegou a Paris muito jovem: em 1640 seu nome figura como guarda na companhia do senhor Des Essarts, em documentos relativos à Arras, e dois anos mais tarde na campanha de Rosellón... Mas nunca serviu como mosqueteiro sob Richelieu, pois ingressou nesse corpo de elite quando já Luis XIII havia morrido. Seu verdadeiro protetor foi o cardeal Julio Mazarino... Existe, por efeito, esse salto de dez ou quinze anos entre ambos d’Artagnan; ainda que Dumas, que após o êxito de Os três mosqueteiros, ampliou a ação até envolver quase quarenta anos na história da França, ajusta mais nos seguintes volumes sua ficção novelesca aos sucessos reais.
        -Quais são os fatos comprovados? Refiro-me às intervenções históricas do autêntico d’Artagnan.
        -Bastantes. Seu nome aparece na correspondência de Mazarino e na do ministério da Guerra. Como o herói de ficção, atuou como agente do cardeal durante a insurreição da Fronda, com cargos de confiança na corte de Luiz XIV. Até lhe encomendaram a delicada detenção e escolta do ministro de Finanças Fouquet, fato confirmado pela correspondência da madame de Sevigné. E pude conhecer ao nosso pintor Velázques na ilha dos Faisanes quando acompanhou a Luis XIV em busca de sua prometida María Teresa de Áustria.
        -Um cortesão, pelo que vejo. Muito diferente do espadachim de Dumas.
        Estiquei uma mão, em defesa do rigor do assunto.
        -Não deixe que as aparências o enganem. Carlos de Batz, o d’Artagnan, seguiu lutando até sua morte. Estava sob as ordens de Turena em Flandes, e em 1657 foi nomeado tenente dos mosqueteiros cinza; cargo que equivalia a chefe efetivo dessa unidade. Dez anos mais tarde subiu a capitão de mosqueteiros e combateu em Flandes com esse mando, similar a general de cavalaria.
        Corso estreitou os olhos atrás das lentes de seu óculos.
        -Perdão –se inclinou até mim sobre o mármore da mesa com o lápis no alto, enquanto escrevia uma palavra ou uma data-. Em que ano isso ocorreu?
        -A ascensão a general? 1667. Porque lhe chama a atenção?
        Mostrava os dentes mordendo o lábio inferior; porém foi só por um instante.
        -Por nada –quando falou, seu rosto havia recobrado a expressão impassível-. Esse mesmo ano queimaram em Roma um certo indivíduo. Uma curiosa coincidência... –agora me olhava, neutro- O nome Aristide Torchia lhe diz algo?
        Lembrei. Nem a mais remota ideia. –Absolutamente –respondi-. Tem relação com Dumas?
        Ainda duvidou um momento.
        -Não –disse por fim, ainda que parecia longe de estar convencido-. Creio que não. Porém continue. Falava do autêntico d’Artagnan em Flandes.
        -Morreu em Maestrich, como disse, à frente de seus homens. Uma morte heroica: sitiavam a praça ingleses e franceses, havia que cruzar um caminho perigoso, e d’Artagnan quis ir primeiro como cortesia pelo que fazia seus aliados... Uma bala de mosquete partiu-lhe a jugular.
        -Nunca foi marechal, então.
        Não. É mérito exclusivo de Alejandro Dumas conceder ao d’Artagnan de ficção o que o mesquinho Luis XIV negou a seu antecessor de carne e osso... Conheço um par de livros interessantes sobre o assunto; anote os títulos se quiser. Um é do Charles Samaran: D’Artagnan, capitaine des mousquetaires du roi, histoire veridique d’um héros de roman, publicado em 1912. O outro é Le vrai d’Artagnan. Escreveu o duque de Montesquieu-Fezensac, descendente direto do d’Artagnan autêntico. Publicado em 1963, me parece.
        Nenhum desses pormenores tinha aparente relação direta com o manuscrito Dumas, porém Corso os anotava como se fosse pela vida dele. De vez em quando levantava a vista do bloco e me dirigia inquisitivos olhares através das lentes torcidas. Outras, inclinava a cabeça como se deixasse de escutar, e parecia absorto em secretas meditações. Nesse momento, ainda que eu mesmo estava à corrente de todos os detalhes sobre O vinho de Anjou, mesmo de certas entradas ocultas para o caçador de livros, me via, longe de imaginar as complexas implicações que o assunto de As Nove Portas ia a ter na história. Porém Corso, apesar de sua mente acostumada a lógica, começava já a estabelecer sinistras relações entre os fatos de cuja informação disponha e, por dizer-lhe de algum modo, o caráter literário sobre o que esses fatos se sustentavam. Tudo isso pode parecer algo confuso, mas tenhamos em conta que para Corso, então, a situação realmente era. E ainda que o momento temporal desta narração é, sem dúvida, posterior ao desenlace dos graves fatos que ocorreram depois, o mesmo caráter do laço –recordem os quadros de Escher, ou ao coringa Bach- nos obriga a retornar continuamente ao princípio, limitando-nos aos estreitos limites da mente de Corso. Saber e calar é a regra. Mesmo quando criam-se armadilhas, sem regras não há jogo.
        -De acordo –disse o caçador de livros depois de anotar os títulos recomendados-. Esse é o primeiro d’Artagnan, o autêntico. E o terceiro é o fictício de Dumas. Imagino que o nexo entre ambos será aquele livro de Gatien de Courtilz que você me mostrou outro dia: as Memoires de M. d’Artagnan.
        -Exato. É o que podemos chamar link perdido, o menos famoso dos três. Um gascão intermédio, literário e real ao mesmo tempo; precisamente o que Dumas utiliza para criar seu personagem... Gatien de Courtilz de Sandras era um escritor contemporâneo de d’Artagnan, que compreendeu o novelesco do personagem e se pôs à tarefa. Século e meio mais tarde, Dumas se integrou da existência do livro durante uma viagem a Marsella. O dono da casa em que se hospedou tinha um irmão encarregado da biblioteca municipal. Segundo parece, o irmão o mostrou o livro, editado em Colônia em 1700. Dumas compreendeu a vantagem  que podia tirar dele, o pediu emprestado e não devolveu nunca mais.
        -Oque sabemos desse antecessor de Dumas, Gatien de Courtilz?
        -Bastante. Entre outras coisas porque tinha uma ficha policial tumultuada. Nasceu em 1644 ou 1647 e foi mosqueteiro, corneta no Royal-Etranger, uma espécie de legião estrangeira da época; e capitão do regimento de cavalaria de Beaupre-Cholseul. Ao terminar a guerra de Holanda, a mesma em que morreu d’Artagnan, Courtilz permaneceu ali para trocar a espada pela puma, escrevendo biografias, temas históricos, memórias mais ou menos apócrifas, piadas e enredos ásperos da corte francesa... Isso o trouxe problemas. As memórias do senhor d’Artagnan tiveram um êxito assombroso: cinco edições em dez anos. Mais desagradou a Luis XIV, pouco satisfeito da irreverêncai com que se narravam alguns pormenores da família real e seus aliados. Isso custou a Courtilz ser apressado para regressar à França, e alojar-se na Bastilha por conta do Estado até pouco antes de sua morte.
        Sem que viesse a conta, o ator aproveitou minha pausa para deslizar uma citação de Em Flandes o sol se pôs, de Marquina: “Nos regia –recitou- /um capitão que vinha/ gravemente ferido na corrida/ de sua última agonia. Senhores, que capitão/ o capitão daquele dia...”. Ou algo assim. Se tratava de uma descarada intenção de brilhar ante à jornalista, cujo a coxa já afirmava a mão como proprietário. Os outros, em especial o novelista que assinava como Emilia Forster, o dirigiram olhares de inveja ou rancor mal dissimulado.
        Após o silêncio cortês, Corso decidiu devolver-me o controle da situação.
        -Quanto deve ao Courtilz o d’Artagnan de Dumas?
        -Deve-o muito. Ainda que em Vinte anos depois e no Bragelonne  se manejam outras fontes, a história de Os três mosqueteiros já está basicamente em Courtilz. Dumas projeta sobre ela seu gênio e lhe dá envergadura; ainda que tudo se encontra embaçado: a benção do padre de d’Artagnan, a carta de Treville, o desafio com os mosqueteiros, que no primeiro texto são irmãos... Milady também aparece. E d’Artagnan se assemelha a d’Artagnan como duas gotas de água. Algo mais cínico o de Courrilz; mais avarento e menos de fiar. Porém é o mesmo.
        Corso se inclinou um pouco sobre a mesa.
        -Antes disse que Rochefort simboliza a trama negra em torno a d’Artagnan e seus amigos... Porém Rochefort não é mais que um escudeiro.
        -De fato. Pago pela Sua Eminência Arando Juan du Plessis, cardeal de Richelieu...
        -O malvado –disse Corso.
        -O malvado Carabel –apostilhou o ator, determinado a continuar fazendo seus truques. Impressionados pela incursão folhetinesca daquela tarde, os estudantes tomavam notas ou escutavam boquiabertos. Só a garota de olhos verdes se mantinha imperturbável, um pocuo à margem; como se estivera ali só de passagem, por casualidade.
        -Para Dumas –continuei, retomando o assunto-, ao menos na primeira parte do ciclo de Os mosqueteiros, Richelieu fornecido o personagem imprescindível em todo folhetim romântico de aventuras e mistério: um inimigo poderoso na sombra, a escarnação do Mal. Para a história da França, Richelieu foi um grande homem. Mais em Os mosqueteiros não é reabilitado vinte anos depois. Assim, o astuto Dumas se reconciliou com a realidade sem que prejudicasse o interesse de sua novela. Já havia encontrado outro vião: Mazarino. Essa retificação, posta na boca de d’Artagnan e seus companheiros quando elogiam, com caráter póstumo, a grandeza de seu antigo inimigo, carece de mérito moral. Para Dumas era um ato cômodo de contrição... Sem delongas, durante o primeiro volume do ciclo, quando o cardeal planeja o assassinato de Buckhingam, a perdição de Ana de Áustria, ou da carta branca à sinistra Milady, Richelieu encarna à perfeição o papel de malvado. Sua Eminência é à d’Artagnan o que o príncipe Gonzaga é à Lagardere, ou o professor Moriarty à Sherlock Holmes. Essa presença oculta e diabólica.
        Corso fez um gesto para interromper-me. Isso era estranho, pois começava a conhecer suas maneiras, e parecia mais próprio dele não intervir até que seu interlocutor esgotara seus argumentos, exprimido o último indicio de informação.
        -Utilizou duas vezes a palavra diabólico –disse olhando suas anotações-. E as duas referindo-se a Richelieu... O cardeal era dedicado pelas ciências ocultas?
        Aquelas palavras produziram uma situação peculiar. A jovem se voltou a observar Corso com curiosidade. Ele olhava a mim, e eu à menina. Alheio ao estranho triângulo, o caçador de livros aguardava minha resposta.
        -Richelieu eram dedicado por muitas coisas –expliquei-. Além de convertem a França em grande potencia, teve tempo para colecionar quadros, tapetes, porcelanas e estátuas. Também foi um bibliófilo importante. Encadernava seus livros em pele de bezerro e marroquino vermelho.
        -... Com suas armas em prata e três ângulos de gules –Corso fez um gesto impaciente; aqueles detalhes eram secundários e não me necessitava para falar disso-. Há um catálogo de Richelieu muito conhecido.
        -Esse catálogo é parcial porque a coleção não se manteve intacta: parte se conserva hoje na biblioteca nacional da França, em Mazarino e na Sorbona, enquanto que outros livros foram à mãos particulares. Possuia manuscritos hebreus e siríacos, obras notáveis de matemáticas, medicina, teologia, direito e história... E acertou, você. O que mais surpreendeu aos estudiosos é encontrar ali muitos textos antigos sobre ciências ocultas, desde a Cábala à magia negra.
        Corso tragou a saliva sem apartar seus olhos dos meus. Parecia alerta; a corda de um arco a ponto de fazer tump.
        -Algum título concreto?
        Neguei com a cabeça antes de responder; sai insistência me intrigava. A garota seguia pendente de nossas palavras, mas era evidente que agora não monopolizava eu sua atenção.
        -Meus conhecimentos sobre Richelieu como personagem de folhetim –me dei licença- não chegam a tanto.
        -E Dumas?... Também era aficionado às artes ocultas?
        Aí fui categórico:
        -Não. Dumas eram um vivedor que fazia tudo à luz do dia, para regozijo e escândalo de seus conhecidos. Também algo supersticioso: acreditava no mal de olho, levava um amuleto na pulseira do relógio e dizia a boaventura pela madame Desbaralles. Mas não o imagino fazendo magia negra na loja. Nem sequer foi maçom, como ele mesmo confessa em O século de Luis XV... Tinha dúvidas, os editores e os credores o assediavam demais para andar perdendo o tempo. Talvez em algum momento, documentando-se para seus personagens, estudara esses temas; porém nunca a fundo. Segundo minhas conclusões, todas as práticas maçônicas que descreve em José Balsamo e em Os moicanos de Paris as estranho diretamente da História pitoresca da francomaçonaria de Clavel.
        -E Adah Menken?
        Olhei Corso com sincero respeito. Aquela era uma pergunta de especialista.
        -Isso foi distinto. Adah-Isaacs Menken, sua última amante, era uma atriz norte americana. Durante a Exposição de 1867, quando assistia a uma representação de Os piratas da sabana, Dumas se fixou em uma linda jovem a que, em cena, arrebatava um cavalo ao galope. Ao sair do teatro, a garota abraçou ao novelista e lhe disse que havia lido todos os seus livros e que estava disposta a ir com ele a cama no ato. O velho Dumas necessitava menos que isso para perseguir uma mulher, assim aceitou a homenagem. Passava por ter sido esposa de um milionário, querida de um rei, general de uma republica... Na realidade era uma judia portuguesa, nascida na América e amante de um tipo estranho, misturado de chulo e pugilista. Dumas e ela tiveram uma relação escandalosa, porque à Menken lhe gostava tirar fotos com pouca roupa e frequentava o 107 da Rua Malesherbes, a última casa de Dumas em Paris... Morreu após uma queda de cavalo, de peritonite, aos trinta e um anos.
        -Era dedicada à magia negra?
        -Isso dizem. Gostava das cerimonias estranhas, vestir-se com uma túnica, queimar incenso e oferecer coisas ao senhor da escuridão... As vezes dizia estar possuída do Satanás, com uma variada serie de conotações que hoje qualificamos como pornográficas. Estou seguro de que o velho Dumas nunca acreditou numa palavra, porém divertiu-se muito com a atriz. Creio que quando a Menken estava possuída pela diabo era muito ardente na cama.
        Soaram gargalhadas em torno da mesa. Até mesmo me permiti um sorriso discreto por conta da piada, porém a garota e Corso permaneceram sérios. Ela parecia refletir, absortos nele seus olhos claros enquanto o caçador de livros assentia com a cabeça, lentamente, ainda que agora tinha o ar distraído, longe. Olhava pela janela até os boulevares e parecia buscar na noite, no discorrer silencioso de faróis de automóveis que se refletiam em suas lentes, a palavra perdida, a chave que convertia numa só todas as histórias que flutuavam folhas secas e mortas, nas águas negras do tempo.
        De novo tenho que passar para o segundo plano, como narrador quase omnisciente das caminhadas de Lucas Corso. Assim, de acordo com mais confidencias do caçador de livros, poderá ordenar-se a relação de trágicos sucessos que vieram depois. Chegamos desse modo ao momento em que, de volta a casa, comprovou que o porteiro acabava de varrer o saguão e estava a ponto de fechar a porta. Cruzou-se com ele quando trazia caixas do porão.
        -Esta tarde vieram arrumar sua televisão. Corso havia lido e visto suficientes filmes para saber o que significava aquilo. De modo que não pode evitar o riso ante o porteiro estupefato.
        -Faz muito tempo que não tenho televisão.
        Sobreveio um confuso terremoto de desculpas, ao que apenas prestou atenção. Tudo começava a ser deliciosamente previsível. Pois de livros se tratava, tinha que plantar o problema mais a modo de leitor, lúcido e crítico, que como o protagonista de consumo barato em que alguém se empenhava em convertê-lo. Tampouco tinha outra opção. Afinal de contas, já que era de natureza cética e tinha pressão baixa, resultava difícil que o suor saísse de seu rosto ou a palavra fatalidade! Brotara de seus lábios.
        -Não fiz mal, senhor Corso.
        -Com certeza. O técnico era moreno, verdade?... Com bigode e uma cicatriz na cara.
        -O mesmo.
        -Tranquiliza-se; é amigo meu. Um piadista.
        O porteiro suspirou aliviado:
        -Me tirou um peso das costas agora.
        Corso não sentia inquietude por As Nove Portas nem o manuscrito Dumas; quando não os leva consigo, dentro da bolsa, os deixava em depósito no bar de Makarova. Tratando-se de objetos relacionados com ele, esse era o lugar mais seguro do mundo. De modo que subiu com calma pela escada enquanto tentava imaginar a cena seguinte. A essas alturas se havia convertido já no que alguns chamavam de leitor de segundo nível, e uma pessoa excessivamente grosseira o havia decepcionado. Porém se tranquilizou ao abrir a porta. Não havia papeis pelo chão, nem gavetas reviradas; nem sequer poltronas destripadas a facadas. Tudo estava em ordem, como deixou ao sair na primeira hora da tarde.
        Foi até a mesa de trabalho. As caixas de disquetes estavam em seu lugar, os papéis e documentos sobre suas bandejas igual os recordava. O homem da cicatriz, Rochefort ou quem diabos fosse, era um tipo diferente; porém tudo tinha um limite. Quando ligou o computador, Corso compôs um sorriso de triunfo.
        DAGMAR PC 555 K (S1) ELECTRONIC PLC
UTILIZADO PELA ÚLTIMA VEZ ÀS 19:35/THU/3/21
A>OFF
A>
        Utilizado às 19:35 daquele mesmo dia, assegurava o computador. Porém não havia tocado no computador nas últimas vinte e quatro horas. Às 19:35 estava conosco na loja de café, enquanto o homem da cicatriz mentia ao porteiro.
        Ainda encontrou algo mais, desavisado no princípio, que agora descobria junto ao telefone. Aquilo não era azar, nem imprevisão por parte do misterioso visitante. Em um cinzeiro, entre as bitucas do próprio Corso, encontrou uma recente, que não era sua. Pentencia a um cigarro quase consumido, com a banda intacta. Colheu a ponta do cigarro e a manteve entre os dedos, incrédulo ao princípio, até que pouco a pouco, a medida que compreendia seu sentido, riu mostrando a presa igual um lobo malicioso e encurralado.
        A marca era Montecristo. Naturalmente.
        Flavio La Ponte também havia recebido visita. Em seu caso, o encanador.
        -Não tem graça, merda –disse a modo de saudação. Esperou a Makarova servir os gins e esvaziou o conteúdo de uma bolsa de celofane na vitrina. O bitaco de cigarro era idêntico, e também a banda estava intacta.
        -Edmundo Dantés ataca de novo –apontou Corso.
        La Ponte só compartia durante o espirito novelesco do assunto:
        -Pois fuma cigarros caros, o maldito –tremia o pulso; algo de gim se derramou pela barba-. O encontrei na minha mesa de noite.
        Corso abertamente ridicularizava:
        -Deveria levar as coisas com mais calma, Flavio. Como um cara durão –pôs uma mão no ombro-. Lembra o Clube de Arponeiros de Narucket.
        O livreiro sacudiu a mão, carrancudo.
        -Fui um cara durão. Exatamente até os oito anos, quando compreendi as vantagens da supervivência. A partir de então me suavizei ligeiramente.
        Corso citou a Shakespeare entre trago e trago. O covarde morre mil vezes e o valente etecetera. Porém La Ponte não era dos que se consolam com citações. Ao menos com esse gênero de citações.
        -Na verdade não tenho medo –disse, reflexivo e cabisbaixo-. O que me preocupa é perde coisas... O dinheiro. Minha incrível potência sexual. A vida.
        Eram argumentos de peso, e Corso teve de admitir que, enquanto a possibilidades, podiam resultar perturbações. Além do mais, afirmou o livreiro, se davam outros indícios: clientes estranhos que desejavam o manuscrito Dumas a qualquer preço, misteriosas chamadas noturnas.
        Corso se ergueu, interessado. –Telefonam no meio da noite?
        -Sim, porém não dizem nada. Fica um tempo assim e logo desligam.
        Enquanto La Ponte narrava suas infelicidades, o caçador de livros tocou a bolsa recuperada momentos antes. Makarova havia a guardado ali todo o dia, atrás da vitrina, entre garrafas e barris de cerveja.
        -Não sei o que fazer –concluiu La Ponte, trágico.
        -Vende o manuscrito e termina com isso. As coisas estão saindo de controle.
        O livreiro moveu a cabeça enquanto pedia outro gim. Duplo.
        -Prometi a Enrique Taillefer que esse manuscrito iria à venda pública.
        -Taillefer está morto. E tu nunca cumpriste uma promessa na vida.
        Assentiu La Ponte, fúnebre, como se não houvesse necessidade de que alguém recordasse daquilo. Porém então, algo o fez despejar a carranca; entre a barba lhe apontava uma careta estupefata. Com boa vontade podia considerar um sorriso.
        -Por certo. Adivinha quem telefonou.
        -Milady.
        -Quase que acerta: Liana Taillefer.
        Corso observou seu amigo com infinito cansaço. Depois pegou o copo de gim para esvaziá-lo sem respirar, de um largo gole.
        -Sabe, Flavio?... –disse por fim, limpando a boca com as costas da mão-. Às vezes tenho a sensação de que já li essa novela antes.
        La Ponte fechava-se novamente. –Quer recuperar O vinho de Anjou –explicou-. Tal qual, sem autenticação nem nada... –molhou os lábios em sua bebida antes de sorrir inseguro a Corso-. Estranho, verdade? Esse interesse repentino.
        -Oque ela te disse?
        O livreiro levantou as sobrancelhas.
        -Que a coisa está fora do meu controle. Que você tem o manuscrito. E que assinou um contrato.
        -É mentira. Não assinamos nada. –Claro que é mentira. Porém assim te enforco se as coisas complicarem. Isso não me impede de atender ofertas: a viúva e eu temos um jantar uma dessas noites. Negócios. Para discutir a questão. Sou o arponeiro audaz.
        -Tu não és arponeiro nem nada. É um sujo, bastardo e traidor.
        -Sim. Inglaterra me fez assim, que diria esse religioso Graham Greene. No colégio me apelidavam Não-fui-eu... Nunca te contei como reprovei em matemática? –alçou outra vez as sobrancelhas, evocador, com ternura nostálgica-... Sempre fui um delator nato.
        -Então tenha cuidado com Liana Taillefer.
        -Por quê? –La Ponte se olhava no espelho do bar. Fez uma careta lúbrica-. Desde que levava os folhetins ao marido eu gosto dessa mulher. Tem muita classe.
        -Sim –concedeu Corso-. Muita classe média.
        -Ouça, não sei por que você tem um gosto tão ruim. Como é evidente.
        -Há gato suspeito.
        -Me encantam os gatos. Sobre tudo se seu donos são loiras e lindas.
        Corso lhe batia com um dedo sobre o nó da gravata
        -Escuta idiota. Nas histórias de mistério sempre morre o amigo. Capita o silogismo?... Esta é uma história de mistério e você é meu amigo –dedicou-o uma piscadela carregada de lógica esmagadora-. Já que leva todos os papéis.
        Obstinado na lembrança da viúva, La Ponte não se deixava intimidar.
        -Oras. Não cantei um bingo na minha vida. Além do mais, já te disse onde eu peço o tiro: no ombro.
        -Falo sério. Taillefer está morto.
        -Suicidado.
        -Supostamente. E pode morrer mais gente.
        -Pois então morra você. Estraga prazeres. Bastardo.

        O resto da noite consistiu em variações sobre o mesmo tema. Despediram-se cinco ou seis copos mais tarde, ficando de telefonar quando Corso estiver em Portugal. La Ponte se foi com passo inseguro e sem pagar, porém o presenteou a bituca de Rochefort. Assim, lhe disse, tem um par.
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